Há quarenta e nove
dias não chovia. Seu coração estava seco. Apenas uma intenção
remota e particular insistia em iluminar seu lado escuro. Sentou na
beira da cama e terminou de selecionar os trezentos e quatro verbos.
Não acreditava mais nos adjetivos. Os substantivos nem cogitou. No
dia seguinte, seu horário estava marcado às sete horas da noite. Cinco e
meia já estava lá, munido dos trezentos e quatro verbos e do ato.
Daria certo.
Sete horas. O tatuador
entrou. Posicionou todas as palavras em seu corpo e não restou
epiderme sem verbo. Tatuou até o rosto. Aos poucos voltava a ser um
camaleão fugido do último tiroteio no Vietnã. Sem pátria e cama.
Quase sem estrelas. Precisava esquecer o rastro daquela mulher.
Tatuou todo o corpo com os verbos. Olhou no espelho, já não era uma
folha em branco. No seu rosto estava escrito verbos
defectivos. Não queria mais conjugar nem ser conjugado. Não queria
uma primeira, segunda nem terceira pessoa. Não era mais singular;
muito menos plural.
No dia seguinte, para
garantir a limpeza de suas hemácias da possível lembrança dela,
fez transfusão de sangue. Ao meio dia, trocou seu sêmen pelo sêmen
de outro homem e para garantir deixou dentro de uma outra mulher.
Foi para casa. Estava deixando de ser rascunho.
Entrou no chuveiro e
antes de ligar a água leu em seu rosto o verbo “reaver”.
Tinha pressa. Chorou duas lágrimas de pedra que caíram e quebraram
o piso do chão. Com uma bucha lavou boca, mãos, pés, saudade,
costas, desejo, coxas, anseios e joelhos. Saiu e enxugou-se com
pressa. Colocou pasta de dentes na escova e antes de começar a
limpeza, inflou o peito, mirou a pia do banheiro e projetou o corpo
para trás e lançou-se velozmente para frente tirando de si um
grande e último escarro. A mulher que ele precisava esquecer estava
um pouco ali. Pelo ralo o escarro marrom escuro desceu, grosso. O
resto da mulher tentou agarrar com suas unhas pintadas o ralo da pia
mas ele ligou a água para garantir o afogamento dos dois: mulher e
escarro.
Sentou na bacia
sanitária e resolveu cortar as unhas. Havia muitos ressentimentos
guardados ali. Unhas são como caixas, aranhas escondidas em quinas,
confeccionando teias sem parar. Vestígios que arranham a mínima
intenção de esquecer. Quanto mais pensava nela, mais cortava.
Cortou até chegar no leito ungueal e só parou porque não havia
mais unha. Tinha certeza que se livrou mais um pouco dela ali. Juntou
os restos, o sangue e jogou tudo dentro da bacia sanitária. Deu
descarga. Suspirou levemente aliviado. A água afogou as unhas. E os
restos.
Levantou e com um
cotonete limpou os ouvidos. Tirou acúmulos de cera. Secreções
reúnem gordura, ranço e passado. Imperceptíveis sobras dela em seu
ouvido gritavam palavras que não queria mais ouvir. Estava quase
limpo. Perfumou-se. Vestiu sua camiseta preferida. Sua calça preta e
seus sapatos brancos. Foi até o jardim e colheu duas margaridas.
Arrumou a mesa de jantar, acendeu uma vela e colou as duas flores no
prato. Despejou azeite nas pétalas e caule e mastigou tudo com um
copo de água gelada. Engoliu as flores e o último resquício dela.
Margaridas não seriam mais suas flores preferidas.
Arrumou a cama e antes
de apagar a luz e finalmente dormir em liberdade, arrotou um punhado
de pólen que foi levado pelo vento e fecundou o jardim da casa da
frente. Meses depois novas flores nasceram do outro lado da calçada.
Mal sabia ele que ali estava ela. Há presenças que não fizeram
catecismo.
Quando - e se - eu crescer, quero escrever bem assim. BEM ASSIM.
ResponderExcluirFantástico, Huck. Enquanto eu lia, eu via cada fragmento do seu texto. Vi ainda hoje um curta (http://www.youtube.com/watch?v=7KQWs5az2V4) feito em parceria por Dali e Disney. Impossível não associar o tipo imagético do curta com o do conto.
Você escreveu surrealismo puro. E do melhor.
Parabéns.
Obrigada, Linné. Feliz pela sua leitura e por seus comentários. Adorei o curta. Lindo, lindo demais.
ExcluirFaz assim, qualquer dia desses a gente cresce e inverte os textos...rs. Amo suas coisas.
Bjs
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
ResponderExcluirSra Huck,
ResponderExcluirLer o seu texto foi um grande prazer.
Bem escrito.
Forte.
Li saboreando todos os pontos,vírgulas,todas as pausas,enfim...
Todo som e imagens...
Um beijo de Margaridas .
Sr Asaci.
Obrigada pela leitura, palavras e ritmo: melhor que seja lido pausadamente. Daí nasce a fortaleza do texto.
ExcluirAbraço,
Huck
Um texto muito forte, creio que são assim muitas das tentativas de esquecer. Mais uma vez, Parabéns. Voltarei cá para descobrir mais textos assim!
ResponderExcluirGostei muito do blog, vou tomar a liberdade de partilhar no facebook, boa leitura merece ser partilhada! :)
Beijo