quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

aS ESTRELAS ESTÃO MORRENDO - por Simone Huck

 Era a última quinta-feira de um dezembro qualquer. A presença dela ainda arranhava o céu da memória dele. Quando foi fechar a janela do quarto já era noite. Lembrou que mês passado leu uma reportagem que dizia que o universo está parando de fabricar novas estrelas. Chorou quando não encontrou as Três-Marias no céu.

Há quarenta e nove dias não chovia. Seu coração estava seco. Apenas uma intenção remota e particular insistia em iluminar seu lado escuro. Sentou na beira da cama e terminou de selecionar os trezentos e quatro verbos. Não acreditava mais nos adjetivos. Os substantivos nem cogitou. No dia seguinte, seu horário estava marcado às sete horas da noite. Cinco e meia já estava lá, munido dos trezentos e quatro verbos e do ato. Daria certo.
Sete horas. O tatuador entrou. Posicionou todas as palavras em seu corpo e não restou epiderme sem verbo. Tatuou até o rosto. Aos poucos voltava a ser um camaleão fugido do último tiroteio no Vietnã. Sem pátria e cama. Quase sem estrelas. Precisava esquecer o rastro daquela mulher. Tatuou todo o corpo com os verbos. Olhou no espelho, já não era uma folha em branco. No seu rosto estava escrito verbos defectivos. Não queria mais conjugar nem ser conjugado. Não queria uma primeira, segunda nem terceira pessoa. Não era mais singular; muito menos plural.

No dia seguinte, para garantir a limpeza de suas hemácias da possível lembrança dela, fez transfusão de sangue. Ao meio dia, trocou seu sêmen pelo sêmen de outro homem e para garantir deixou dentro de uma outra mulher. Foi para casa. Estava deixando de ser rascunho.
Entrou no chuveiro e antes de ligar a água leu em seu rosto o verbo reaver”. Tinha pressa. Chorou duas lágrimas de pedra que caíram e quebraram o piso do chão. Com uma bucha lavou boca, mãos, pés, saudade, costas, desejo, coxas, anseios e joelhos. Saiu e enxugou-se com pressa. Colocou pasta de dentes na escova e antes de começar a limpeza, inflou o peito, mirou a pia do banheiro e projetou o corpo para trás e lançou-se velozmente para frente tirando de si um grande e último escarro. A mulher que ele precisava esquecer estava um pouco ali. Pelo ralo o escarro marrom escuro desceu, grosso. O resto da mulher tentou agarrar com suas unhas pintadas o ralo da pia mas ele ligou a água para garantir o afogamento dos dois: mulher e escarro.

Sentou na bacia sanitária e resolveu cortar as unhas. Havia muitos ressentimentos guardados ali. Unhas são como caixas, aranhas escondidas em quinas, confeccionando teias sem parar. Vestígios que arranham a mínima intenção de esquecer. Quanto mais pensava nela, mais cortava. Cortou até chegar no leito ungueal e só parou porque não havia mais unha. Tinha certeza que se livrou mais um pouco dela ali. Juntou os restos, o sangue e jogou tudo dentro da bacia sanitária. Deu descarga. Suspirou levemente aliviado. A água afogou as unhas. E os restos.

Levantou e com um cotonete limpou os ouvidos. Tirou acúmulos de cera. Secreções reúnem gordura, ranço e passado. Imperceptíveis sobras dela em seu ouvido gritavam palavras que não queria mais ouvir. Estava quase limpo. Perfumou-se. Vestiu sua camiseta preferida. Sua calça preta e seus sapatos brancos. Foi até o jardim e colheu duas margaridas. Arrumou a mesa de jantar, acendeu uma vela e colou as duas flores no prato. Despejou azeite nas pétalas e caule e mastigou tudo com um copo de água gelada. Engoliu as flores e o último resquício dela. Margaridas não seriam mais suas flores preferidas.

Arrumou a cama e antes de apagar a luz e finalmente dormir em liberdade, arrotou um punhado de pólen que foi levado pelo vento e fecundou o jardim da casa da frente. Meses depois novas flores nasceram do outro lado da calçada. Mal sabia ele que ali estava ela. Há presenças que não fizeram catecismo.

6 comentários:

  1. Quando - e se - eu crescer, quero escrever bem assim. BEM ASSIM.

    Fantástico, Huck. Enquanto eu lia, eu via cada fragmento do seu texto. Vi ainda hoje um curta (http://www.youtube.com/watch?v=7KQWs5az2V4) feito em parceria por Dali e Disney. Impossível não associar o tipo imagético do curta com o do conto.

    Você escreveu surrealismo puro. E do melhor.

    Parabéns.

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    1. Obrigada, Linné. Feliz pela sua leitura e por seus comentários. Adorei o curta. Lindo, lindo demais.
      Faz assim, qualquer dia desses a gente cresce e inverte os textos...rs. Amo suas coisas.
      Bjs

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  3. Sra Huck,
    Ler o seu texto foi um grande prazer.
    Bem escrito.
    Forte.
    Li saboreando todos os pontos,vírgulas,todas as pausas,enfim...
    Todo som e imagens...
    Um beijo de Margaridas .
    Sr Asaci.

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    1. Obrigada pela leitura, palavras e ritmo: melhor que seja lido pausadamente. Daí nasce a fortaleza do texto.
      Abraço,
      Huck

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  4. Um texto muito forte, creio que são assim muitas das tentativas de esquecer. Mais uma vez, Parabéns. Voltarei cá para descobrir mais textos assim!

    Gostei muito do blog, vou tomar a liberdade de partilhar no facebook, boa leitura merece ser partilhada! :)

    Beijo

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