quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

mAÇÃS molhadas - por Simone Huck

"Snow White", Mark Ryden.

Nunca fui uma criança calma. Não sou uma mulher calma. Quando nasci, o médico pediu agulha e linha para o instrumentista e costurou uma alma inquieta dentro de mim. Temperamento questionador. Olhos ávidos que se desgastaram mais cedo. Estou ficando cega. Os anos me deram uma alta miopia. Sem óculos, não enxergo um palmo depois do meu próprio nariz. Há pessoas que gostam dessa minha cegueira. Quando era apenas o pai, a mãe, eu e o quintal da casa que não existe mais, também devorava tudo com avidez. Engolia o tempo com olhos bons de ver. Mastigava nuvens e flores do jardim. Tudo tinha um gosto exato. Lembrança é quente e tem cor. É quadro pendurado na memória, sem desgaste do tempo ou da miopia que lentamente embaça meus olhos.

Ver sem enxergar.

O quintal da casa onde nasci era grande. Sem irmãos, a atenção era toda minha. Sempre precisei de plateias. Há quem nasce, cresce e morre montado num picadeiro. De óculos ou não.

Chovia muito naquela tarde. Há chuvas que chovem mais. Na cama estavam esparramadas as contas do mês. O aluguel da casa do quintal grande, luz, água, a hipoteca da casa nova e fria. Pai e mãe felizes, conferindo os números e sonhando com a chegada dos meus irmãos. Todos habitariam a próxima casa. Eu tinha seis anos. Não consultaram minha vontade nessa época. Não havia miopia para coração. Nesse tempo eu enxergava e via. Só pensava em viver ali.

Lá fora a chuva seguia inundando intenções. Talvez as minhas, que não queriam acreditar na migração familiar. Irritada, porque nasci irritada, fui até a cozinha, peguei um pano e um tubo de lustra móveis, escalei a cômoda de roupas que ficava embaixo da janela. Alcancei a janela – escalaria qualquer montanha aos seis anos de idade. Sentei no parapeito e birrenta, disse que ia limpar. Os pais só disseram “cuidado”. Sabiam que nada mais poderia impedir minhas vontades lusitanas. Há crianças que já nascem reis ou rainhas. Eles voltaram ao mundo da matemática enquanto eu fiquei no mundo das janelas, panos e ceras. Nessa época eu sabia ser feliz.

A tempestade aumentou. Começou a chover granizo, pedra, metal, madeira. Olhei pela fresta da janela e lá fora os Duendes do jardim dançavam felizes. Branca de Neve tirou o vestido, ficou nua, resolveu tomar chuva na epiderme toda. Ela era bonita. Cantava, sorria e rodopiava liberta, de mãos dadas com todos os Duendes. Com o pano nas mãos, eu só queria limpar a chuva, lustrar as pedras, secar as flores do jardim e me juntar à dança. Fiquei em pé na cômoda. Minhas pequenas mãos intencionaram alcançar o último vidro. Raios e trovões. A chuva só aumentava. Lá fora parecia mar. Eles gritavam no jardim. Será que a Bruxa protegeu a plantação de maçãs? Meu pequeno coração em diástole acelerada e inocente seguia limpando o vidro e indagando. Deve ter sido nesse dia que passei a questionar mais e viver menos. A janela abriu repentinamente.

De tudo que lembro, mais de trinta anos depois, esse dia eterniza-se. Corpo caído e esticado no chão do jardim. Testa aberta. Chuva e sangue misturados na ponta da língua. Pensei em chorar mas o desenho que a chuva fazia ao descer do céu e cair direto nos meus olhos roubou a vontade da dor. Tangente. Corpo e chuva. Deve ter sido nesse dia que passei a amar os dias de água. Oxalá chovessem os trezentos e sessenta e cinco dias do ano. Eu saberia usar barco.

Em segundos o pai pulou a janela com o lençol da cama nas mãos. Enrolou meu corpo jogado no chão e começou a correr pelo quintal. Branca de Neve e os Duendes abriram espaço para o resgate. A Bruxa má piscou, garantindo em seu deboche o salvamento da plantação. Atrás a mãe chorava e gritava, dizendo que da minha testa saltava um “galo”. Não o ouvi cantar. Correram pela rua no meio da chuva. Rastro de sangue, água e lágrimas do rosto vermelho da mãe. Líquidos borbulhando na mesma panela. Tudo era tão bonito e dolorido. Eu sentia sono e tontura.

Naquele tempo a farmácia da esquina era o pronto-socorro do melhor hospital e o Seu Antônio, o velho farmacêutico de cento e doze anos de idade, era o médico mais experiente do mundo. Eu queria dormir, ninguém deixava. Tudo ficava lentamente turvo. A mãe gritava para que eu abrisse os olhos. O pai estava estático – hoje sei de quem herdei essa prontidão. Lentamente a chuva foi ficando distante e as luzes do mundo foram desligando-se. Também apaguei.

Quando acordei estava deitada no quarto dos meus pais, seca e protegida. Alguns pontos na testa. Seu Antônio era farmacêutico cirurgião. Os quatro-olhos ávidos do pai e da mãe misturavam-se ao concreto do teto do quarto. Não chovia mais lá fora. Sorri, perguntei se choveria novamente e olhei para a janela. Estava tudo limpo. O brilho do vidro lustrado revelou as flores do jardim e a Branca de Neve estática e vestida, ao lado dos Duendes sorridentes. Naquele dia aprendi a lustrar possíveis espelhos que refletem coisas bonitas do mundo.

Deitada no chão, descobri o que era ser chuva com dor.

2 comentários:

  1. E entre outras coisas, Júlia disse "amei","é bonita". Eu também, ela manda um beijo e um abraço.
    Um encanto de vapor de chuva, texto lindo,Si.Parabéns, um xero.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Beijos de chuva na Júlia. Obrigada pela leitura, Dilma. Prossigamos entre pingos e grãos. Beijos em vocês duas,
      S

      Excluir

o Febre CRÔNICA agradece sua leitura e comentário.