"Snow White", Mark Ryden.
Nunca fui uma criança calma. Não sou uma mulher calma. Quando nasci, o médico pediu agulha e linha para o instrumentista e costurou uma alma inquieta dentro de mim. Temperamento questionador. Olhos ávidos que se desgastaram mais cedo. Estou ficando cega. Os anos me deram uma alta miopia. Sem óculos, não enxergo um palmo depois do meu próprio nariz. Há pessoas que gostam dessa minha cegueira. Quando era apenas o pai, a mãe, eu e o quintal da casa que não existe mais, também devorava tudo com avidez. Engolia o tempo com olhos bons de ver. Mastigava nuvens e flores do jardim. Tudo tinha um gosto exato. Lembrança é quente e tem cor. É quadro pendurado na memória, sem desgaste do tempo ou da miopia que lentamente embaça meus olhos.
Ver
sem enxergar.
O quintal da casa onde
nasci era grande. Sem irmãos, a atenção era toda minha. Sempre
precisei de plateias. Há quem nasce, cresce e morre montado num
picadeiro. De óculos ou não.
Chovia muito naquela
tarde. Há chuvas que chovem mais. Na cama estavam esparramadas as
contas do mês. O aluguel da casa do quintal grande, luz, água, a
hipoteca da casa nova e fria. Pai e mãe felizes, conferindo os
números e sonhando com a chegada dos meus irmãos. Todos habitariam
a próxima casa. Eu tinha seis anos. Não consultaram minha vontade
nessa época. Não havia miopia para coração. Nesse tempo eu
enxergava e via. Só pensava em viver ali.
Lá fora a chuva seguia
inundando intenções. Talvez as minhas, que não queriam acreditar
na migração familiar. Irritada, porque nasci irritada, fui até a
cozinha, peguei um pano e um tubo de lustra móveis, escalei a cômoda
de roupas que ficava embaixo da janela. Alcancei a janela –
escalaria qualquer montanha aos seis anos de idade. Sentei no
parapeito e birrenta, disse que ia limpar. Os pais só disseram
“cuidado”. Sabiam que nada mais poderia impedir minhas vontades
lusitanas. Há crianças que já nascem reis ou rainhas. Eles
voltaram ao mundo da matemática enquanto eu fiquei no mundo das
janelas, panos e ceras. Nessa época eu sabia ser feliz.
A tempestade aumentou.
Começou a chover granizo, pedra, metal, madeira. Olhei pela fresta
da janela e lá fora os Duendes do jardim dançavam felizes. Branca
de Neve tirou o vestido, ficou nua, resolveu tomar chuva na epiderme
toda. Ela era bonita. Cantava, sorria e rodopiava liberta, de mãos
dadas com todos os Duendes. Com o pano nas mãos, eu só queria
limpar a chuva, lustrar as pedras, secar as flores do jardim e me
juntar à dança. Fiquei em pé na cômoda. Minhas pequenas mãos
intencionaram alcançar o último vidro. Raios e trovões. A chuva só
aumentava. Lá fora parecia mar. Eles gritavam no jardim. Será que a
Bruxa protegeu a plantação de maçãs? Meu pequeno coração em
diástole acelerada e inocente seguia limpando o vidro e indagando. Deve ter sido nesse dia que passei a questionar mais e
viver menos. A janela abriu repentinamente.
De tudo que lembro,
mais de trinta anos depois, esse dia eterniza-se. Corpo caído e
esticado no chão do jardim. Testa aberta. Chuva e sangue misturados
na ponta da língua. Pensei em chorar mas o desenho que a chuva fazia
ao descer do céu e cair direto nos meus olhos roubou a vontade da
dor. Tangente. Corpo e chuva. Deve ter sido nesse dia que passei a
amar os dias de água. Oxalá chovessem os trezentos e sessenta e
cinco dias do ano. Eu saberia usar barco.
Em segundos o pai pulou
a janela com o lençol da cama nas mãos. Enrolou meu corpo jogado no
chão e começou a correr pelo quintal. Branca de Neve e os Duendes
abriram espaço para o resgate. A Bruxa má piscou, garantindo em seu
deboche o salvamento da plantação. Atrás a mãe chorava e gritava,
dizendo que da minha testa saltava um “galo”. Não o ouvi
cantar. Correram pela rua no meio da chuva. Rastro de sangue, água e
lágrimas do rosto vermelho da mãe. Líquidos borbulhando na mesma
panela. Tudo era tão bonito e dolorido. Eu sentia sono e tontura.
Naquele tempo a
farmácia da esquina era o pronto-socorro do melhor hospital e o Seu
Antônio, o velho farmacêutico de cento e doze anos de idade, era o
médico mais experiente do mundo. Eu queria dormir,
ninguém deixava. Tudo ficava lentamente turvo. A mãe gritava para
que eu abrisse os olhos. O pai estava estático – hoje sei de quem
herdei essa prontidão. Lentamente a chuva foi ficando distante e as
luzes do mundo foram desligando-se. Também apaguei.
Quando acordei estava
deitada no quarto dos meus pais, seca e protegida. Alguns pontos na
testa. Seu Antônio era farmacêutico cirurgião. Os quatro-olhos
ávidos do pai e da mãe misturavam-se ao concreto do teto do quarto.
Não chovia mais lá fora. Sorri, perguntei se choveria novamente e
olhei para a janela. Estava tudo limpo. O brilho do vidro lustrado revelou as flores do jardim e a Branca de Neve estática e vestida, ao
lado dos Duendes sorridentes. Naquele dia aprendi a lustrar possíveis
espelhos que refletem coisas bonitas do mundo.
Deitada no chão,
descobri o que era ser chuva com dor.
E entre outras coisas, Júlia disse "amei","é bonita". Eu também, ela manda um beijo e um abraço.
ResponderExcluirUm encanto de vapor de chuva, texto lindo,Si.Parabéns, um xero.
Beijos de chuva na Júlia. Obrigada pela leitura, Dilma. Prossigamos entre pingos e grãos. Beijos em vocês duas,
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