terça-feira, 25 de dezembro de 2012

oS FESTEJOS - por Dilma Alencar.


É manhã de natal e importa mais ser manhã.
Um homem dorme em frente ao banco Safra, esquina da Paulista com a Augusta, exibe uma ferida aberta na coxa, ele fede, ele fuma. O crack comeu seu sorriso. Os dois dentes que restam estão escondidos por trás de seu bigode branco e piolhento.
Duas distintas senhoras atravessam a faixa de pedestre exibindo roupas de cortes finos e elegantes, cabelos engenhosamente montados para parecerem naturais.
As sacolas vermelhas deixam o laço dourado arrastando pela calçada. As vidas de luxo e de lixo dividem a mesma calçada.
O homem cospe e coça a barba, uma garrafa de uísque passaporte é seu desjejum. Cada um com seu panetone.
As pernas brancas e tatuadas sobem a Rua Augusta e dobram a esquina em direção ao metrô. Homens de mãos dadas, um deles segurando uma long neck heineck. Falam de Beatles e do quarteto de cordas do teatro municipal.
O rapaz da padaria ainda traz o sotaque e os sonhos frescos, e pensa ser passagem o presente de ônibus cheio, preconceitos vistos e aos poucos aprende a odiar. No amontoado de gente apertada em ônibus e terminais ele conta os dias e vive um futuro que pode não existir, aprendeu a odiar quando se viu sem família, aprendeu a odiar no natal do ano passado, quando a marmita fria o fez vomitar e trabalhou com febre e ódio o dia inteiro, pois a cidade não para.
As meninas brancas bebem cerveja e gozam no banheiro de um bar gay, enquanto seus amigos esperam o misto quente com café com leite.
A T.V. do bar exibe clipes antigos e eles veem a Madonna com a mesma inveja que uma mulher tem de outra.
Da janela de seu apartamento pequeno uma mulher bebe chá, de costa para a grande avenida, ela vê seu namorado, um cara culto, tão carinhoso quanto sua amiga Gabi com quem transa de vez em quando.Para não “entediar”, dizia.
Ele exibia as costas largas e bonitas.
É manhã de natal. Os transeuntes daquela avenida, àquela hora da manhã, carregavam pequenas angústias. Moralidades e ímpetos de sexo. Os bares, as camas, as cores, os brilhos, tudo excitava o corpo e as placas diziam “goze os festejos”.
 Descendo um túnel, numa outra avenida da cidade de concreto, flores suavizam e colorem o que já fora corpo. A paz está ali, pois a inquietude deixara aquela gaiola de carne e luto.
Cheirando a maconha e vodca os meninos afeminados voltavam para suas famílias duras, a mulher do apartamento tomou banho e com muito carinho fez café para o namorado.
As senhoras entraram em suas casas com poltronas de estofados bucólicos e feios.
Só o homem da calçada não pensava, apenas sentia dor. A perna expulsava pus e quando algum pensamento surgia era de medo, pois o lanche jogado no chão por algum outro bêbado atraia moscas, e agora sua perna era alvo. Havia moscas na Avenida Paulista. As moscas também têm fome. Sangue e sacrifício ainda são as alegorias do velho mito de morte e ressurreição.
Mas o dia era de nascimento, e no hospital, perto do Paraíso, sim, alguém nascia vestindo o sangue de sua mãe.

4 comentários:

  1. Dilma, você tem câmeras nos dedos. E filma enquanto digita para que possamos olhar enquanto lemos. Eu vi cada ponto, cada vírgula, cada traço e cada cedilha daqui. Com nojo ou vontade ou cumplicidade ou culpa. Eu fui parte de tudo isso que, de algum modo, não é texto mais. É realidade mais crua e real que a própria realidade.

    Sua última frase é genial. "vestindo o sangue de sua mãe". Perfeito.

    E não sei por que conexões estranhas, eu vi esse menino como o mendigo no futuro. :p

    Não posso com otimismos, eu sei...

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Obrigada,Linné. Você tem um olhar atento ao texto, é bonito. Eu quis chegar perto das coisas que sinto, ali tudo mendigava , perto do banco Safra.Eu Também não posso com otimismos esses dias, o menino nascia nessa safra de miséria.
    Um xero pra você.

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  4. Não conheço esta avenida, mas ao lê-la, é como se estivesse lá! Acompanhando a dureza dos corações, que se vai formando sem saber, não tão dura como a vida parece ser. Acompanhando o hábito de ser, que se usa como desculpa.
    Sorrindo com a frase final de esperança, um nascimento é-o sempre!
    Gostei muito do seu texto, Dilma!

    Convido-a também a conhecer os meus espaços, onde será sempre bem vinda:

    http://instantaneospretobranco.blogspot.pt/
    http://diasqueolhoomundo.blogspot.pt/

    Beijos

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