É manhã de natal e importa mais ser manhã.
Um homem dorme em frente ao banco Safra, esquina da
Paulista com a Augusta, exibe uma ferida aberta na coxa, ele fede, ele fuma. O
crack comeu seu sorriso. Os dois dentes que restam estão escondidos por trás de
seu bigode branco e piolhento.
Duas distintas senhoras atravessam a faixa de pedestre
exibindo roupas de cortes finos e elegantes, cabelos engenhosamente montados
para parecerem naturais.
As sacolas vermelhas deixam o laço dourado arrastando
pela calçada. As vidas de luxo e de lixo dividem a mesma calçada.
O homem cospe e coça a barba, uma garrafa de uísque passaporte é seu desjejum. Cada um com
seu panetone.
As pernas brancas e tatuadas sobem a Rua Augusta e
dobram a esquina em direção ao metrô. Homens de mãos dadas, um deles segurando uma
long neck heineck. Falam de Beatles e
do quarteto de cordas do teatro municipal.
O rapaz da padaria ainda traz o sotaque e os sonhos
frescos, e pensa ser passagem o presente de ônibus cheio, preconceitos vistos e
aos poucos aprende a odiar. No amontoado de gente apertada em ônibus e
terminais ele conta os dias e vive um futuro que pode não existir, aprendeu a
odiar quando se viu sem família, aprendeu a odiar no natal do ano passado,
quando a marmita fria o fez vomitar e trabalhou com febre e ódio o dia inteiro,
pois a cidade não para.
As meninas brancas bebem cerveja e gozam no banheiro
de um bar gay, enquanto seus amigos esperam o misto quente com café com leite.
A T.V. do bar exibe clipes antigos e eles veem a
Madonna com a mesma inveja que uma mulher tem de outra.
Da janela de seu apartamento pequeno uma mulher bebe chá,
de costa para a grande avenida, ela vê seu namorado, um cara culto, tão
carinhoso quanto sua amiga Gabi com quem transa de vez em quando.Para não “entediar”,
dizia.
Ele exibia as costas largas e bonitas.
É manhã de natal. Os transeuntes daquela avenida,
àquela hora da manhã, carregavam pequenas angústias. Moralidades e ímpetos de
sexo. Os bares, as camas, as cores, os brilhos, tudo excitava o corpo e as
placas diziam “goze os festejos”.
Descendo um
túnel, numa outra avenida da cidade de concreto, flores suavizam e colorem o
que já fora corpo. A paz está ali, pois a inquietude deixara aquela gaiola de
carne e luto.
Cheirando a maconha e vodca os meninos afeminados
voltavam para suas famílias duras, a mulher do apartamento tomou banho e com
muito carinho fez café para o namorado.
As senhoras entraram em suas casas com poltronas de
estofados bucólicos e feios.
Só o homem da calçada não pensava, apenas sentia dor.
A perna expulsava pus e quando algum pensamento surgia era de medo, pois o
lanche jogado no chão por algum outro bêbado atraia moscas, e agora sua perna
era alvo. Havia moscas na Avenida Paulista. As moscas também têm fome. Sangue e
sacrifício ainda são as alegorias do velho mito de morte e ressurreição.
Mas o dia era de nascimento, e no hospital, perto do
Paraíso, sim, alguém nascia vestindo o sangue de sua mãe.
Dilma, você tem câmeras nos dedos. E filma enquanto digita para que possamos olhar enquanto lemos. Eu vi cada ponto, cada vírgula, cada traço e cada cedilha daqui. Com nojo ou vontade ou cumplicidade ou culpa. Eu fui parte de tudo isso que, de algum modo, não é texto mais. É realidade mais crua e real que a própria realidade.
ResponderExcluirSua última frase é genial. "vestindo o sangue de sua mãe". Perfeito.
E não sei por que conexões estranhas, eu vi esse menino como o mendigo no futuro. :p
Não posso com otimismos, eu sei...
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirObrigada,Linné. Você tem um olhar atento ao texto, é bonito. Eu quis chegar perto das coisas que sinto, ali tudo mendigava , perto do banco Safra.Eu Também não posso com otimismos esses dias, o menino nascia nessa safra de miséria.
ResponderExcluirUm xero pra você.
Não conheço esta avenida, mas ao lê-la, é como se estivesse lá! Acompanhando a dureza dos corações, que se vai formando sem saber, não tão dura como a vida parece ser. Acompanhando o hábito de ser, que se usa como desculpa.
ResponderExcluirSorrindo com a frase final de esperança, um nascimento é-o sempre!
Gostei muito do seu texto, Dilma!
Convido-a também a conhecer os meus espaços, onde será sempre bem vinda:
http://instantaneospretobranco.blogspot.pt/
http://diasqueolhoomundo.blogspot.pt/
Beijos