Abriu os olhos e do
lado viu seu marido. Teias de aranha confundiam as frestas de sol que
tentavam entrar pela janela. Era mais um dia. Mais um copo de
café. Novas esperas. Ausência de esperança. Nada que fosse
palpável de mudança. Não havia nem malas novas, nem coragens
velhas. Atrás dos dentes escondia-se alguma palavra que não ousava
dizer em voz alta. O silêncio conhecia sua aflição. Crenças
desacreditadas. Não havia Deus para dizer o que era certo. Não
havia santo ou altar para que pudesse ajoelhar ou suplicar. Nas suas
pernas havia mais cansaços do que a mínima possibilidade de
milagre. Os dias contradiziam-se. A pele queimava desejos novos. A
vida oferecia caminhos antigos. Não sabia se era neste mundo. Não
sabia se era no mundo passado. Não sabia de onde aquilo tudo
apareceu para metralhar sua paz cinza. Tinha uma boca tão bonita.
Andava tão calada. Era dia dos pais.
Ela estava de quatro.
Ele estava por trás. Segurou seus cabelos loiros e pediu para que
ela rebolasse. Nunca estavam satisfeitos. Ele tinha mais dez minutos
pra gozar. Ela tinha mais quatro clientes para atender. A madrugada
anunciava pela janela uma lua que parecia uma boca sorrindo. Ela não
via graça, nem sorriso, nem lua, nem noite. Enquanto ele metia ela
gemia mentiras. Ele gozou. Ela levantou e limpou o umbigo e a boca.
Ele jogou cinquenta reais na cama. Ela passou uma vida inteira sem
ouvir a palavra “eu te amo”. Cada um virou a esquina no sentido
oposto. Sombras de uma madrugada úmida. Ele não estava satisfeito.
Antes de voltar pra casa, precisava de mais algumas metidas. Tinha
150 reais no bolso. Ela pegou o celular e conferiu se havia novas
mensagens. Estava na hora de Marcelo acreditar que ela era atendente
noturna numa empresa de telefonia. Que era mulher séria. Que merecia
ouvir ao menos uma vez “eu te amo”. Nada. Sem mensagens. Sem
Marcelo. João era o próximo cliente e ela precisaria mentir bem.
Era Domingo de Páscoa.
Ele era tão bonito.
Desde menino se destacava da maioria. Cabelos longos e macios, lisos.
Olhos ávidos, claros. Sorriso aberto. Conduzia o mundo com hálito
de sonho bom. Era pessoa do bem. Ninguém poderia atestar o
contrário. Casou. Não teve filhos. Construía casas. Comprou a dele
de outro engenheiro. Quando fez trinta anos descobriu que não sabia
o que era viver. Quando sua esposa preparou um jantar para pedir um
filho, ele colocou sua melhor camisa para pedir o divórcio. Foi na
mesma noite. Cada um tratou de engolir suas próprias vírgulas. Ele
vendeu tudo. Resolveu sair nu na noite mais fria do ano. Sentou
debaixo de uma árvore molhada. Abraçou suas pernas e ficou vendo os
carros passarem. Era Natal.
Mais um cigarro. O
cinzeiro estava cheio de intenções. Mais uma dose de vodca. Era
impossível permanecer sóbria. Era viciada. Consumia todas as
tendências do mundo dos destilados. Era conhecida pelos malucos na
boca de fumo. Ia ao médico para pegar receitas azuis. No armário do
banheiro colecionava psicotrópicos. Tinha um estado de pasmaceira
tão natural que achavam que era loucura e não vício. Talvez
excesso de leitura. Todos a conheciam e gostavam dela. Era moça
estudada. Dava palestras para os adolescentes da igreja. Dava aula na
universidade a noite. Nos finais de semana visitava as exposições
temporárias da cidade e todos esperavam que ela publicasse uma
mínima nota falando a respeito. Tudo o que ela falava produzia
efeito. Tudo o que ela ingeria, também. Chegava em casa sempre
sozinha. Tinha sete gatos e dois passarinhos machos que moravam na
mesma gaiola. Uma gata conversava com um dos passarinhos. Era o único erotismo presente naquela casa. Toda a íntima conversação da vida dela era lacônica. Os bichos ficavam na maior parte do tempo estáticos, olhando o vaso pendurado na janela do vigésimo sétimo andar. As nuvens faziam parecer que o vaso dançava. Eram todos lunáticos ou, talvez, sensatos em demasia. Guardava a maioria dos livros debaixo da cama. Às
vezes gostava de comer traças gordas. Eram suculentas e frias. Era
como comer restos de livros. Restos de palavras. Restos do resto.
Vomitou antes de apagar a luz e esperar um outro dia. Era dia de
Finados.
O calendário marcava a mundial histeria: 21.12.2012. Nada tremeu. Nada mudou. Sorriram um sorriso cinza de quem nada espera. Até os dentes se acostumam à previsibilidade da boca. Não era feriado para nenhum deles.
Minha cara, tão bom ler-te no meio da tarde. Imaginar essas figuras comuns que apresentas. Desbravar essa realidade agridoce.
ResponderExcluirbacio