quinta-feira, 27 de junho de 2013

aLIANÇAS - por Simone Huck


"Cabo da Roca - Sintra, 2012"- Simone Huck

Comprou o ramalhete de flores mais bonito e um cartão para escrever durante o percurso. Acenou para o ônibus vermelho e sujo na Av. Sumaré. Passou o bilhete sem dizer bom dia ao cobrador. Sentou ao lado de sua mudez. Não havia grandes palavras.

Sem perceber, começou a despetalar as flores. Uma por uma. Pela janela, a chuva umedecia intenções de coração enquanto seu olhar era lavado com a paisagem que passava rápido. O chão do ônibus, repleto de rastros molhados, lentamente transformou-se num tapete de pétalas sonâmbulas. Quem via, não ousava dizer nada. No ar, pairava uma vontade coletiva de choro. Os passageiros – cinzas - ajustavam seus cachecóis de uma maneira mais apertada ao pescoço e engoliam sobras de suas próprias vidas. Junto a pingos de chuva ácida, espinhos entravam pelas frestas das poucas janelas abertas. Em segundos, o ônibus ficou em total silêncio. Flores escorriam pelo assoalho molhado de um lado para o outro. A vida desapareceu no caminho.

Desceu dois pontos antes do final com um ramalhete de galhos enrolado a um papel opaco e amassado. Agarrado a intenções mortas, apertou a campainha do sobrado azul e, antes mesmo de qualquer pessoa aparecer, deixou o ramalhete de galhos no pé do portão, com um cartão em branco.

A viagem o libertou de bem-me-queres e malmequeres.

terça-feira, 25 de junho de 2013

dO DIA - por Adilma Alencar.

Uma mulher extremamente cansada usa de advérbios de intensidade, não convence ninguém, não explica o útero fértil de sangue todo mês. Cuida das plantas, as flores murcham de tanto cinza e fazem enfeite ao chão.
A pia suja, os pratos cheios, os restos, a pizza fria e a panela de arroz, é o cenário.
A janela fechada abafa a casa e a razão pegou voo internacional, Afeganistão.
Dissera os sermões de todos os ofícios, sentada no vaso sanitário ela lê publicações de matemática e reportagens sobre manuscritos encontrados num campo minado de um país em guerra.
Em guerra, uma mulher em guerra.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

dESISTÊNCIA - por Vinícius Linné

Eu cresci em uma casa de fraquezas. Por isso eu me fiz de forte.

Por muito tempo eu consegui fingir. Eu consegui fazer de conta que aguentava, que suportava tudo sem riscos, que tinha esperança até. Sim, até esperança eu consegui fingir.

Não consigo mais.

Antes eu podia fazer de conta que todo abalo era teatro de comover. Tal como fazia minha mãe, antes dela minha avó e antes dela, ainda, minha bisavó. Houve um tempo em que eu conseguia fingir que era hipocondríaco como elas.

Não consigo mais.

Eu não consigo mais fingir que minha fraqueza é fingimento. 

Ela é tudo que há de real em mim.

Minha máscara de ferro se quebrou e o rosto que há por baixo é de porcelana. Porcelana trincada. Eu cubro esse rosto com as mãos, eu tento protegê-lo, eu tento seguir, eu tendo me curar. 

Não consigo mais.

Tudo que eu podia consertar, eu consertei. Tudo que havia para remendar, eu remendei. Agora sou só cacos, só restos, só pedaços de demolição. Sou pura estrutura. E não demora, não demora para que eu comece a me implodir.

Há um limite para as reformas. Deve haver até um número específico de vezes em que o rabo de uma lagartixa cresce. Deve haver. Deve haver um ponto em que o coração de um homem não se refaz mais.

Antes eu conseguia fingir que não precisava de uma mão na minha. Que não precisava que secassem minhas lágrimas, que não precisava de uma intervenção e meia dúzia de comprimidos tarja preta.

Não consigo mais.

Dou dois passos inteiros, dois passos eretos, dois passos confiantes. E no terceiro eu já rastejo. Rastejo alheio ao que pensam, alheio ao que possa isso significar. Alheio aos risos e à dignidade que aprendi ainda menino com a frieza azul de Ághata.

Tudo que eu quero, então, é não andar mais. É parar. Erguer as mãos. Me render.
Eu quero desistir. Eu quero deixar tudo como está. Eu quero preservar o pouco que há. Eu não quero mais ter força. Exige demais. Machuca demais. Eu não quero me recompor para cair outra vez. Eu não quero colar os cacos se é para quebrá-los em pedaços menores. Eu não quero outra máscara de ferro se é para suportar novos golpes até ela se partir outra vez.

Não consigo mais.



terça-feira, 18 de junho de 2013

eNVELOPES VERDES - por Adilma Alencar.

Ontem eu vi suas cores pela Avenida Sumaré, era cedo. Muita gente dormia, muita gente voltava para casa. Eu chegava, os livros relidos, os riscos tortos na agenda, meu olhar perdido em tudo que vivia àquela mesma hora luzente, dois pombos brigavam pela mesma migalha, batata palha espalhada na calçada, perto de brincos de princesa que enfeitavam a manhã.

Uma mulher passou com uma saia longa azul-marinho que poderia muito bem ser sua, uma bolsa marrom e o seu jeito de andar apressada, os cabelos castanhos ondulados eram mais longos que os seus, mas o volume era o mesmo, eles desciam lindos sobre a blusa preta de mangas longas, ela usava anéis de prata e uma pulseira preta que me lembrava seus acessórios. Meu olhar correu a avenida, esqueceu as pombas e se perdeu numa memória de cinco anos atrás, quando num dia de chuva, no trânsito pesado da Avenida Brasil, entre uma palavra e um gesto, eu lhe dissera o quanto o meu amor me pesava nos passos, você não entendeu, morremos entre orações adversativas e conclusões burguesas acerca de sua estupidez. Eu a ofendi. 

A cidade está entupida de amor e ódio. Num beco, homens picham frases pedindo amor, numa sala vazia um homem recebe sangue de estranhos e faz a via-crúcis do corpo.
Eu li no jornal que a lua está no signo de leão, recortei o horóscopo para montar uma aula de como construir o discurso genérico.
Os jornais ferem qualquer linguagem sã.
Escrevi cartas para estranhos e as abandonei nos bancos do parque Ibirapuera, li essa ideia em algum lugar. Eu as escrevi como se fossem para você, eu lhe pedi desculpa e lhe ofereci viagens a países orientais.
Um senhor de mais de 70 anos, imagino, achou um dos envelopes e eu sorri, tentando adivinhar quais as memórias que isso moveria, se felicidade, arrependimentos, qual é o sentimento que uma carta de amor suscita?
É bonito, é sim. Eu fiquei alegre, pensando que uma carta cheia de confetes, saudade, citações pessoanas, cheias do que é ser mulher, só pode fazer bem. Uma carta de amor é um ato rebelde, quase revolucionário, porque ofende a indústria do lucro, destoa a produtividade colérica, não vê o trânsito, não se importa com o aumento da passagem, com a entrega do projeto, com as malas, as notas, os métodos contraceptivos, as políticas educacionais, uma carta de amor é um vandalismo são de quem não está preocupada com a idade, as rugas, a renda, é um “muito obrigada” ao prazer terrorista de viver essa ebulição de uma cidade entupida.
Por isso, de hoje, como de ontem, como de sempre em diante eu escrevo cartas de amor, notas de amor aos pombos, aos senhores, às senhoras, aos anônimos bonitos e miseráveis que por ventura abram os envelopes verdes abandonados apaixonadamente nos bancos, nos pontos de ônibus, nas cadeiras dos bares, nas praças, nos espaços dos pombos, das migalhas, dos brincos de princesa.

Eu escrevo cartas de amor.


segunda-feira, 17 de junho de 2013

tIRO - por Vinícius Linné

Botou o peito na rua a pichar muros, atirar pedras e desviar de bombas. Expulsou o coração aos protestos, aos gritos, às placas grandes que poetizavam sobre a política.

Fez o peito beber do vinagre que carregava nos bolsos. Espirrou pimenta nos seus olhos e lhe ensinou uma canção de guerra. Bateu-lhe com um cassetete até saltarem-lhe os miolos. Depois o beijou. Mentira.

Fez o peito cheirar armas e bramir flores, disparando ora pétalas, ora balas de borracha, ora obscenidades de quartel, ora quintanares...

Derrubou o peito no chão e o pisoteou até não mais poder. Depois, esperou que alguém o levasse para uma ambulância. Mentira. Colocou o peito em um camburão e o mandou prestar esclarecimentos. Ligou para o pai e a mãe do peito e deu-lhes a absolvição. Mentira.

Não havia respeito? Fez o peito chorar e pedir que fossem para suas casas, que estabelecessem a ordem, que abandonassem a rua e não gritassem nunca mais. Estava farto. Vestiu o peito de farda, beijou-lhe a mulher no portão e disse-lhe que voltava, que se ninguém o matasse, voltava.

Ouviu do peito a ordem de atirar. 

E atirou.

Atirou-se.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

a mulher VESTIDA DE ROSAS - por Simone Huck


"Sangue", 2012 - Simone Huck
  
Vestiu-se de rosas. Não. Não da cor rosa e sim da flor rosa. Rosas vermelhas e vivas, flamejantes. Colocou-se nua e aproveitou que as flores estavam maduras, com suculentos espinhos capazes de atravessar longos centímetros de epiderme e músculos. Num lento ritual ia posicionando as rosas em cima dos braços, pernas, barriga, costas e cravava, uma a uma, em sua pele. Em algum lugar da sua pequena vida sobrevivia uma certa paixão, ainda que suspensa.
Não, não sangrava. Nem doía. Já fazia tempo que nada sangrava. Quando a vida pesa, ela empedra, vira casco, osso, coágulo seco e hirto. Olhou no relógio, eram quase seis horas do dia 22 de julho, dia de Santa Maria Madalena e também o dia de enfim, cravar-se de rosas. 
Chegou em casa com dois baldes capazes de abrigar seis dúzias de flores em espinho. Estava feliz. Estava vermelha. Estava estabelecida. Sentia que aquele era o momento exato de finalmente dar algum sentido à sua vida e validar as escrituras. Havia uma pequena réstia de crença em si. Andava cansada de procurar alguma razão útil entre terra e céu. 
Olhou-se no espelho e finalmente estava vestida com a roupa que tanto desejou. Por cima da sua nudez somente rosas. Do seu corpo só se via o rosto e a sola dos pés. Abriu a porta da casa e saiu ereta, correta e decidida. Naquele exato momento passava uma procissão. Os fiéis carregavam o altar com a Santa Maria Madalena e quando a notaram quase deixaram cair a santa. A maioria deles, beatos e servos de Deus, cochicharam alguma permitida blasfêmia e fizeram o sinal da cruz, mas ela, toda fincada de rosas, não se deixou intimidar pela artilharia dos sagrados olhares. Profana e santa, coberta de flores mundanas, seguiu pelo meio da procissão. O cotidiano era o seu purgatório particular e naquele dia ela se livraria dele, pensou. Nesse momento, Santa Maria Madalena, esculpida em cedro, sorriu-lhe de cima do altar e a protegeu. Ia piscar quando um descuidado beato, magoado com a cena, deixou pingar uma gota de vela em cima dos seus olhos santos de madeira. Mas para ela era o suficiente: o sorriso de Maria Madalena lhe conferia a certeza da possibilidade e permissão. Lembrou que só de passar pela procissão, fazia parte dela e lembrou também que foi assim com Madalena:
Os doze estavam com ele, bem como algumas mulheres que haviam sido curadas de espíritos malignos e de enfermidades: Maria, chamada Madalena, da qual tinham saído sete demônios.”(Lucas 8:1-2)
Já fazia tempo que não sabia mais do sagrado e nem se estava exorcizada de seus sete demônios particulares, mas ao caminhar toda cravada de rosas, abraçava lentamente a sua libertação. Seguiu atravessando a multidão de olhos julgadores. Passou pela farmácia, pela mercearia, pela padaria e arrancou todas as possíveis e secas palavras até chegar, finalmente, na praça central da cidade. Já passava das sete horas da noite e ainda haviam alguns poucos meninos recolhendo suas pipas dos céus. Os bancos da praça já estavam sendo disputados pelos anônimos que ali iriam profanar seus amores. Tudo tangia a um silêncio quase hediondo das noites decisivas.
Procurou o jardim principal e repentinamente sua boca salivou. Engoliu a certeza de que aquele era o lugar ideal para as rosas serem cultivadas. Sentiu a terra molhada em seus pés e sorriu. Ajoelhou, passou as mãos na grama e sorriu mais ainda. 
Finalmente tinha encontrado a sua cama. Deitou de barriga para cima, braços e pernas abertos, corpo completamente coberto de rosas. Olhou a luz da lua. Ousou imaginar um rosto nas nuvens mas nada viu. Nada se formou. Nenhuma imagem. Nenhum sinal. Nesse momento não sentia nem alegria, nem tristeza. Sua vida lentamente foi calando-se, vermelha e deu tempo apenas de suspirar algo como:
"Comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes para a terra, pois dela foste tirado. Tu és pó e ao pó voltarás." (Gênesis 3:19) 
 
No jardim, sorriu um novo botão de rosas ainda de manhã.
 

terça-feira, 11 de junho de 2013

nAMORADA - por Adilma Alencar.

Ela anda pelos corredores, elevadores, escadas rolantes, lojas.
Comprou um relógio caro para o namorado, avaliou o preço, avaliou o valor e achou justo deixar o relógio como último presente.
Um ano de namoro. Ela pensava, o olhar distante não disfarçava o embaraço que sentia dentro.
Ela entrou numa lanchonete ainda dentro do shopping, pediu um suco de melão e torradas e ficou por ali durante horas, pensando como começaria o diálogo. O que diria? Não havia uma razão, era uma decisão vã, vazia.
Num repente que ela nunca saberá precisar, um gosto rançoso e amargo lhe invadiu a boca, um solo de violoncelo lhe ressoou na espinha e ela perdeu o prumo. Foi um pesar que lhe caiu nos ombros, mas se envergonhou por não saber dizê-lo. Agora, sozinha na lanchonete, um ranço de raiva e de orgulho lhe irritava os cílios, alguma coisa querendo virar água.
Era mulher sã, era mulher livre, pensava hesitante entre sair e pedir um café.
Pediu um café, tomou um gole quente e amargo, secou os lábios, mexeu na bolsa; batom, rímel e espelho, retocou a maquiagem e saiu.
Não deu o último presente ao seu namorado, não deu a última ligação, não disse adeus.
Sumiu, linda, insanamente linda. Uma saudade remota vai arranhar a sua alegria de rosa, alegria de louco.
Seu riso será sempre bruto e doce como deve ser o riso de uma mulher livre que ama.
Ela não soube ser namorada.

Não soube.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

cOMO bENTINHO E cAPITOLINA - Por Vinícius Linné

Eram vizinhos. 

Uma rua e uma casa de distância.

O telefone (1410 o dele e 1527 o dela) era vigiado por extensões e controlado por mães atentas. Logo, não era a forma mais eficaz de se comunicarem. Precisavam inventar algo. Algo que fosse só deles. Algo secreto e complicado. Algo que mãe nenhuma desvendaria.

Primeiro criaram inscrições em código, feitas a giz na calçada dele - ela não tinha calçada. Para ela era um pânico só, parar ali, desenhar um sol, um gato, uma flor e seguir, seguir como se não fosse insano desenhar na calçada alheia. Ainda mais não sendo assim tão criança. Além disso, havia a chuva, as mangueiras, a falta de giz, gesso e tijolo...

Não, precisavam de algo mais sofisticado.

Criaram latas de correspondência. Latas que podiam ser amarradas na cerca e derrubadas entre as flores, para que ninguém as visse. A casa dele tinha um matagal, a dela era limpa de plantas. Logo, a lata dela ficava exposta e as cartas, mesmo em código, eram pegas pela mãe em fúria.

Precisavam de algo mais sofisticado ainda.

Ele pensou em um sistema de roldanas que atravessasse a rua por cima dos postes. Da bergamoteira nos fundos da casa dele até a ameixeira nos fundos da casa dela. Logo, porém, deu-se conta das impossibilidades.

Quem sabe um telefone daqueles feitos de copo? O fio atravessando a rua, sendo abaixo e recolhido quando não fosse usado? Os primeiros protótipos revelaram o fracasso da ideia.

Ele comprou, então, um walkie-talkie japonês. Era a solução perfeita! Pelo menos até o aparelho ser ligado e transmitir uma longa série de chiados, enquanto um olhava para o outro (a uma rua e uma casa de distância), a fazer sinais de aflição.

O walkie-talkie tinha uma vantagem, porém. Um código Morse impresso! Em um livro de Pedro Bandeira, ele aprendeu como usar o código, sinalizando com lanternas de brinquedo. Combinaram um horário. Um horário em que ele sempre esperava na janela do quarto e ela nunca aparecia na janela do banheiro.

Um dia ela apareceu. Suspense.

Piscadelas longas e curtas. Curtas e longas e curtas e longas ou seriam longas e curtas?

L-I-V-R-O-S-A-T-A-N-A-S-M-E-R-G-U-L-H-O-M-A-Ç-A

Livro satanás mergulho maçã? O que ela queria dizer? Ele perdeu a noite imaginando. Isso porque eles tinham mesmo mistérios...

Quando se encontraram, no muro que separava a escola dele e a escola dela, ele perguntou o que ela quis, afinal, dizer com "Livros satanás mergulho maçã". Ela olhou, boquiaberta, garantindo a ele que dissera "Me espere para aula amanhã". E por que ele não esperara?

O código Morse definitivamente não funcionou. Precisavam de algo mais sofisticado. E só por isso a ciência se intensificou. Popularizaram-se os computadores, nasceu a internet, o universo em tudo conspirou com ICQs, MSNs e Orkuts.

O tempo, infiel, porém, fez com que eles também se sofisticassem. Até a chegada do Facebook, anos depois, eles tinham o método de comunicação perfeito!

Nem se adicionaram. 

Não havia nem mais uma palavra que quisessem dizer um ao outro.

quarta-feira, 5 de junho de 2013

bISTURI do tempo - por Simone Huck

 "Sem título", 2010 - Simone Huck

Eram feitos de carne, seus ossos. Qualquer dureza que intencionasse lhe sustentar. Era feito de abril seu outubro cinza, quieto, quase morto. Ele trocava a música, a roupa, a direção do carro e ainda assim, tudo afligia seu pulmão desesperado por paz. Não, não estava em guerra. Nem em conflitos. Não haviam mais medos ou dúvidas; estava na verdade, branco. Sem cores na alma ou na pálpebra. Sem vermelho nas veias ou nas teias. Estava lentamente morrendo por dentro. Sombras fantasmagóricas beijam nosso presente com lábios de passado.

Trouxeram a maca da urgência. Colocaram todas as suas veias sobre ela. Um sistema sanguíneo indo para uma sala de transfusão. Quiseram lhe injetar vermelho, roxo, amarelo ou laranja. Qualquer cor que pudesse lhe colorir. Era urgente a tentativa, vão o movimento. Havia perdido qualquer tipo de possibilidade no dia em que ela lhe negou três vezes:
Não
Não
Não

Nesse dia não havia Paulo, Cristo ou galo cantando. Soldados do exército romano não apareceram. Nenhum interrogatório se levantou da terra seca. Ali, ele soube que estava sendo sacrificado pelos problemas particulares dela: sua casa, sua família, seus filhos, suas contas e traumas. Na intenção de reparar seu passado omisso, ela omitia seu melhor presente, seu melhor homem, seu exclusivo amor. Condenou-os a um eterno purgatório simplesmente porque não o enxergou quando era preciso nem ousar piscar.

Os anos seguiam.
Ele sem sangue. Ela, sem retina.
Nada mais tremia.

Semana passada ela entrou em cirurgia. Estava tão cega, tão cega que nem mais conseguia sair de casa. Tinha dificuldades para levantar da cama sozinha.
Trouxeram a maca da sala de cirurgia, colocaram seus olhos sobre ela e levaram o cego par para raspagem. Depositaram os dois num recipiente com água pura. Era preciso retirar a camada grossa de sal. Lágrimas solidificadas. Com luvas e muito cuidado, os médicos pegaram os olhos nas mãos e descascaram cada um deles até a retina ficar novamente limpa e doce. Colocaram tudo no lugar. Pronto. Ela ganharia alguns dias de luz. Voltou para casa caminhando. Não estava feliz, mas também não estava triste. Estava, lentamente, morrendo por dentro.

Havia um altar particular no coração de ambos. Velas vazias queimavam saudades diárias. Eram incapazes de refazer os caminhos perdidos, as palavras atropeladas; retomar os anos onde foram simplesmente, felizes. Instalou-se as pedras da incapacidade. Só atravessava quem era morador local. Não moravam no mesmo bairro, nem na mesma cidade. Dias impossíveis sorriam manhãs de café com leite. Tinham dificuldades para dormir nos últimos anos. O amor amanhecia atrás da porta do quarto, incansavelmente. Vida transformada em migalhas para alimentar estômago vencido.

Semana passada ele foi novamente pra cirurgia. Tinha passado a semana revendo as mais de sete mil fotografias que tinham juntos. Não resistiu. Taquicardia. Asfixia. Braços formigando. Trouxeram a maca. Colocaram seu coração em cima dela e correram para a emergência cardíaca. Seu corpo, vendo a cena, desejou que tudo pudesse acabar ali. Será que era possível, com um bisturi, arrancar o amor que sentia por ela do seu miocárdio? Na hipótese de um possível sim, sorriu. Encontrou paz nesse sorriso.

Semana passada ela foi novamente pra cirurgia. Havia passado a semana toda falando nele. Os dentes não aguentaram. A língua secou. O palato derreteu pela acidez das lembranças mortas. Os lábios quase gangrenaram pela repetição do nome dele. Colocaram sua boca em cima da maca e a levaram para a sala de cirurgia. Seu corpo, vendo a cena, desejou que tudo pudesse acabar ali. Será que era possível, com um bisturi, arrancar o gosto dele das suas insistentes papilas gustativas? Arrancar a imagem dele escondida entre seus dentes? Na hipótese de um possível sim, sorriu. Encontrou paz nesse sorriso.

Tudo tangia a uma incansável e débil tentativa de se apagarem.
Há esperança na mentira. 
 
Texto publicado em 11 de outubro de 2012 no Febre Crônica.

terça-feira, 4 de junho de 2013

jUNHO - por Adilma Secundo Alencar.

Junho em São Paulo, as moças já desfilam meias quentes, colorindo as pernas e a avenida. O  cinza que cai tão bem à cidade se faz cenário para novos amores, para desenlaces de outono, para datas.
Uma mulher costura vestidos longos para a filha mais velha, uma jovem tricota um cachecol colorido para aquecer e enfeitar o corpo, um casal empolgado no primeiro ano de namoro compra passagens para o calor do nordeste.
Uma mulher lê Foucault e escreve sobre a loucura nas entrelinhas do discurso televisivo, um menino de 12 anos se masturba pensando na professora de 20.

As margaridas amarelas saltam esplendidas nos dias gelados, os ambulantes vendem meias, capas de chuva, cobertores, tapetes. Os ônibus lotados de pessoas e solidão seguem para o centro, o desespero estrangulado pelos números do holerite segue mais uma fila num terminal qualquer, a fé pré- datada pela violência dos que forjaram os milagres segue fazendo orações condicionais.

É terça, não é feriado, um homem não segue a marcha da ordem diária. Ele dorme sob cobertas sujas, deitado no concreto da Álvares Penteado, um livro do Neruda no bolso do puído paletó azul. É feio, os dentes podres não alegram nem sua feição, nem o humor dos transeuntes que ele aborda, 39 anos, graduação em filosofia, viagem à Índia e o maior amor do mundo tem os olhos audaciosos e infiéis como devem ser os olhos de imperadores. No meio do caos e das pulgas, seu fiel escudeiro é um vira lata marrom, de olhos vagabundos e voláteis. É Junho e os comerciais de T.V. já dizem do dia dos namorados. Na esquina de um café perto do Largo São Francisco, um rapaz eternamente nordestino põe a farda e o fardo de tudo que lhe falta e segue servindo aos homens de paletó preto que ocupam as cadeiras da academia, pelo discurso se mantém a opressão, pelo curso do açúcar até à mesa, o homem do lado de fora do balcão pergunta do jogo, o rapaz responde à gentileza óbvia das conversas ditas possíveis. As putas dormem o sono do cansaço e a dor da alma violentada nos programas, o rosário de contas rosa junto às camisinhas de embalagem colorida. Cio não é sina, rezava baixo pelo cansaço da voz, por ter cansaço no ritmo, por ter entre as pernas a insistente cólica de todas as manhãs.

Um homem espera com uma alegria abafada e apertada dentro do peito o nascimento do seu primeiro filho, quantos nascimentos esperados? A cidade abriga a vida de amores, de solidão, de ambição, de saudade. Uma moça dança nua num apartamento frio e pequeno da Bela Vista, um homem compra um berço branco para o filho, no Grajaú um aniversário de 15 anos é esperado como um casamento. Não é em vão. Os retratos enfeitam a parede, não é em vão.

É Junho, a multidão segue cuspindo na dor, apertando o calo, gozando uma memória, uma mania, gozando a feiura que a cidade mais bonita pode dar. A cidade cresce.



segunda-feira, 3 de junho de 2013

pARTILHA - por Vinícius Linné

Alguém andava pela casa, desasado, carregando nas mãos um incenso de incomodar defuntos. Alguém revirava o avesso dos quadros na esperança de encontrar, quem sabe, algum dinheiro. Alguém achava um pássaro morto atrás da santa ceia e se benzia, muitas, muitas vezes, chamando o do incenso para espantar o agouro e o cheiro. Alguém revirava o lixo porque foi lá que largaram as pérolas e o rosário de ágata azul. Alguém sacudia os lençóis e separava os mais bonitos para si. Alguém varria o porão com os olhos e lembrava dos beijos que dera escondido ali.

Alguém juntava pedaços de papel, como em uma quebra-cabeças, enquanto alguém derramava fora a polenta de uma bacia de louça. Alguém espanava as cumbucas de barro e dizia como ficariam lindas pintadas. Alguém segurava uma caixa de 200 anos e pensava se a restaurava ou se a colocava fora. Alguém empurrava para outro alguém um quadro que ninguém queria. Alguém procurava um quadro de anjo. Ninguém o vira.

Alguém dizia que podiam vender o que ninguém quisesse e então os outros queriam. Alguém vasculhava os papéis e jogava fora os recibos de dez anos atrás. Alguém ficava de olho para ver se esse alguém não acharia dinheiro escondido. Achou? É mil réis! Alguém pegava coisas para jogar fora, só para que ninguém mais pegasse.

Alguém vinha e dizia: "esse era com você que ele queria que ficasse". Ficavam, então. Alguém ensacolava coisas e mais coisas, sem nem pensar. Alguém levava frigideiras de ferro e uma cadeira de balançar.

Alguém levava os perfumes fechados para revender. Alguém queria uma casa de louça, mas ninguém vira. Alguém encontrou joias no armário, joias das quais ninguém sabia. Alguém experimentava casacos no quarto e alguém testava o chuveiro do banheiro.

Alguém discutia sobre a posse da televisão. Ninguém queria.

Alguém repartia as xícaras de porcelana Schmidt. Três pra cá, três pra lá. Alguém encontrava a miniatura de ferramentas e lembrava de tanta coisa... tanta coisa... Alguém colocava fora o rádio de todos os dias. Alguém colocava fora as cuecas de sempre e ensacolava as camisas de domingo.

Alguém desprendia papéis dos fundos das gavetas, quem sabe encontraria dinheiro...

Alguém dizia "é meu o que era do pai, é seu o que era da mãe!"

Ninguém chorava. Simplesmente.