"Sangue", 2012 - Simone Huck
Vestiu-se
de rosas. Não. Não da cor rosa e sim da flor rosa. Rosas vermelhas e vivas, flamejantes. Colocou-se nua e
aproveitou que as flores estavam maduras, com suculentos espinhos
capazes de atravessar longos centímetros de epiderme e músculos.
Num lento ritual ia posicionando as rosas em cima dos braços,
pernas, barriga, costas e cravava, uma a uma, em sua pele. Em algum lugar da sua pequena vida sobrevivia uma certa paixão, ainda que suspensa.
Não,
não sangrava. Nem doía. Já fazia tempo que nada sangrava. Quando a vida pesa,
ela empedra, vira casco, osso, coágulo seco e hirto. Olhou no
relógio, eram quase seis horas do dia 22 de julho, dia de Santa
Maria Madalena e também o dia de enfim, cravar-se de rosas.
Chegou
em casa com dois baldes capazes de abrigar seis dúzias de flores em
espinho. Estava feliz. Estava vermelha. Estava estabelecida. Sentia
que aquele era o momento exato de finalmente dar algum sentido à sua
vida e validar as escrituras. Havia uma pequena réstia de crença em si. Andava cansada de procurar alguma razão
útil entre terra e céu.
Olhou-se no espelho e finalmente estava
vestida com a roupa que tanto desejou. Por cima da sua nudez somente
rosas. Do
seu corpo só se via o rosto e a sola dos pés. Abriu a porta da
casa e saiu ereta, correta e decidida. Naquele exato
momento passava uma procissão. Os fiéis carregavam o altar com a
Santa Maria Madalena e quando a notaram quase deixaram cair a santa.
A maioria deles, beatos e servos de Deus, cochicharam alguma permitida
blasfêmia e fizeram o sinal da cruz, mas ela, toda fincada de rosas,
não se deixou intimidar pela artilharia dos sagrados olhares.
Profana e santa, coberta de flores mundanas, seguiu pelo meio da
procissão. O cotidiano era o seu purgatório particular e naquele dia ela se
livraria dele, pensou. Nesse momento, Santa Maria Madalena, esculpida
em cedro, sorriu-lhe de cima do altar e a protegeu. Ia piscar quando
um descuidado beato, magoado com a cena, deixou pingar uma gota de
vela em cima dos seus olhos santos de madeira. Mas para ela era o
suficiente: o sorriso de Maria Madalena lhe conferia a certeza da
possibilidade e permissão. Lembrou
que só de passar pela procissão, fazia parte dela e lembrou também
que foi assim com Madalena:
“Os
doze estavam com ele, bem como algumas mulheres que haviam sido
curadas de espíritos malignos e de enfermidades: Maria, chamada
Madalena, da qual tinham saído sete demônios.”(Lucas 8:1-2)
Já
fazia
tempo que não sabia mais do sagrado e nem se estava exorcizada
de seus sete demônios particulares, mas ao caminhar toda cravada de
rosas, abraçava lentamente a sua libertação. Seguiu atravessando a
multidão de olhos julgadores. Passou pela farmácia, pela mercearia,
pela padaria e arrancou todas as possíveis e secas palavras até
chegar, finalmente, na praça central da cidade. Já
passava das sete horas da noite e ainda haviam alguns poucos meninos
recolhendo suas pipas dos céus. Os bancos da praça já estavam sendo
disputados pelos anônimos que ali iriam profanar seus amores. Tudo
tangia a um silêncio quase hediondo das noites decisivas.
Procurou
o jardim principal e repentinamente sua boca salivou. Engoliu a
certeza de que aquele era o lugar ideal para as rosas serem
cultivadas. Sentiu a terra molhada em seus pés e sorriu. Ajoelhou,
passou as mãos na grama e sorriu mais ainda.
Finalmente
tinha encontrado a sua cama. Deitou de barriga para cima, braços e
pernas abertos, corpo completamente coberto de rosas. Olhou a luz da
lua. Ousou imaginar um rosto nas
nuvens mas nada viu. Nada se formou. Nenhuma imagem. Nenhum sinal. Nesse momento
não sentia nem alegria, nem tristeza. Sua vida lentamente foi
calando-se, vermelha e deu tempo apenas de suspirar algo como:
"Comerás
o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes para a terra,
pois dela foste tirado. Tu és pó e ao pó voltarás." (Gênesis
3:19)
No
jardim, sorriu um novo botão de rosas ainda de manhã.
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