Alguém andava pela casa, desasado, carregando nas mãos um incenso de incomodar defuntos. Alguém revirava o avesso dos quadros na esperança de encontrar, quem sabe, algum dinheiro. Alguém achava um pássaro morto atrás da santa ceia e se benzia, muitas, muitas vezes, chamando o do incenso para espantar o agouro e o cheiro. Alguém revirava o lixo porque foi lá que largaram as pérolas e o rosário de ágata azul. Alguém sacudia os lençóis e separava os mais bonitos para si. Alguém varria o porão com os olhos e lembrava dos beijos que dera escondido ali.
Alguém juntava pedaços de papel, como em uma quebra-cabeças, enquanto alguém derramava fora a polenta de uma bacia de louça. Alguém espanava as cumbucas de barro e dizia como ficariam lindas pintadas. Alguém segurava uma caixa de 200 anos e pensava se a restaurava ou se a colocava fora. Alguém empurrava para outro alguém um quadro que ninguém queria. Alguém procurava um quadro de anjo. Ninguém o vira.
Alguém dizia que podiam vender o que ninguém quisesse e então os outros queriam. Alguém vasculhava os papéis e jogava fora os recibos de dez anos atrás. Alguém ficava de olho para ver se esse alguém não acharia dinheiro escondido. Achou? É mil réis! Alguém pegava coisas para jogar fora, só para que ninguém mais pegasse.
Alguém vinha e dizia: "esse era com você que ele queria que ficasse". Ficavam, então. Alguém ensacolava coisas e mais coisas, sem nem pensar. Alguém levava frigideiras de ferro e uma cadeira de balançar.
Alguém levava os perfumes fechados para revender. Alguém queria uma casa de louça, mas ninguém vira. Alguém encontrou joias no armário, joias das quais ninguém sabia. Alguém experimentava casacos no quarto e alguém testava o chuveiro do banheiro.
Alguém discutia sobre a posse da televisão. Ninguém queria.
Alguém repartia as xícaras de porcelana Schmidt. Três pra cá, três pra lá. Alguém encontrava a miniatura de ferramentas e lembrava de tanta coisa... tanta coisa... Alguém colocava fora o rádio de todos os dias. Alguém colocava fora as cuecas de sempre e ensacolava as camisas de domingo.
Alguém desprendia papéis dos fundos das gavetas, quem sabe encontraria dinheiro...
Alguém dizia "é meu o que era do pai, é seu o que era da mãe!"
Ninguém chorava. Simplesmente.
Visual. Ao mesmo tempo que tomamos o lugar de um alguém e num ato particular, fazemos parte da procissão da partilha. A vida deve ser isso mesmo...
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