"Sem título", 2010 - Simone Huck
Eram feitos de carne,
seus ossos. Qualquer dureza que intencionasse lhe sustentar. Era
feito de abril seu outubro cinza, quieto, quase morto. Ele trocava a
música, a roupa, a direção do carro e ainda assim, tudo afligia
seu pulmão desesperado por paz. Não, não estava em guerra. Nem em
conflitos. Não haviam mais medos ou dúvidas; estava na verdade,
branco. Sem cores na alma ou na pálpebra. Sem vermelho nas veias ou
nas teias. Estava lentamente morrendo por dentro. Sombras
fantasmagóricas beijam nosso presente com lábios de passado.
Trouxeram a maca da
urgência. Colocaram todas as suas veias sobre ela. Um sistema
sanguíneo indo para uma sala de transfusão. Quiseram lhe injetar
vermelho, roxo, amarelo ou laranja. Qualquer cor que pudesse lhe colorir. Era urgente a tentativa, vão o
movimento. Havia perdido qualquer tipo de possibilidade no dia em que
ela lhe negou três vezes:
Não
Não
Não
Nesse dia não havia
Paulo, Cristo ou galo cantando. Soldados do exército romano não
apareceram. Nenhum interrogatório se levantou da terra seca. Ali,
ele soube que estava sendo sacrificado pelos problemas particulares
dela: sua casa, sua família, seus filhos, suas contas e traumas.
Na intenção de reparar seu passado omisso, ela omitia seu melhor
presente, seu melhor homem, seu exclusivo amor. Condenou-os a um
eterno purgatório simplesmente porque não o enxergou quando era
preciso nem ousar piscar.
Os anos seguiam.
Ele sem sangue. Ela,
sem retina.
Nada mais tremia.
Semana passada ela
entrou em cirurgia. Estava tão cega, tão cega que nem mais
conseguia sair de casa. Tinha dificuldades para levantar da cama
sozinha.
Trouxeram a maca da
sala de cirurgia, colocaram seus olhos sobre ela e levaram o cego par
para raspagem. Depositaram os dois num recipiente com água pura. Era
preciso retirar a camada grossa de sal. Lágrimas solidificadas. Com
luvas e muito cuidado, os médicos pegaram os olhos nas mãos e
descascaram cada um deles até a retina ficar novamente limpa e doce.
Colocaram tudo no lugar. Pronto. Ela ganharia alguns dias de luz.
Voltou para casa caminhando. Não estava feliz, mas também não
estava triste. Estava, lentamente, morrendo por dentro.
Havia um altar
particular no coração de ambos. Velas vazias queimavam saudades
diárias. Eram incapazes de refazer os caminhos perdidos, as palavras
atropeladas; retomar os anos onde foram simplesmente, felizes.
Instalou-se as pedras da incapacidade. Só atravessava quem era
morador local. Não moravam no mesmo bairro, nem na mesma cidade.
Dias impossíveis sorriam manhãs de café com leite. Tinham
dificuldades para dormir nos últimos anos. O amor amanhecia atrás
da porta do quarto, incansavelmente. Vida transformada em migalhas
para alimentar estômago vencido.
Semana passada ele foi
novamente pra cirurgia. Tinha passado a semana revendo as mais de
sete mil fotografias que tinham juntos. Não resistiu. Taquicardia.
Asfixia. Braços formigando. Trouxeram a maca. Colocaram seu coração
em cima dela e correram para a emergência cardíaca. Seu corpo,
vendo a cena, desejou que tudo pudesse acabar ali. Será que era
possível, com um bisturi, arrancar o amor que sentia por ela do seu
miocárdio? Na hipótese de um possível sim, sorriu. Encontrou paz
nesse sorriso.
Semana passada ela foi
novamente pra cirurgia. Havia passado a semana toda falando nele. Os
dentes não aguentaram. A língua secou. O palato derreteu pela
acidez das lembranças mortas. Os lábios quase gangrenaram pela
repetição do nome dele. Colocaram sua boca em cima da maca e a
levaram para a sala de cirurgia. Seu corpo, vendo a cena, desejou que
tudo pudesse acabar ali. Será que era possível, com um bisturi,
arrancar o gosto dele das suas insistentes papilas gustativas?
Arrancar a imagem dele escondida entre seus dentes? Na hipótese de
um possível sim, sorriu. Encontrou paz nesse sorriso.
Tudo tangia a uma
incansável e débil tentativa de se apagarem.
Há esperança na mentira.
Texto publicado em 11 de outubro de 2012 no Febre Crônica.
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