terça-feira, 18 de junho de 2013

eNVELOPES VERDES - por Adilma Alencar.

Ontem eu vi suas cores pela Avenida Sumaré, era cedo. Muita gente dormia, muita gente voltava para casa. Eu chegava, os livros relidos, os riscos tortos na agenda, meu olhar perdido em tudo que vivia àquela mesma hora luzente, dois pombos brigavam pela mesma migalha, batata palha espalhada na calçada, perto de brincos de princesa que enfeitavam a manhã.

Uma mulher passou com uma saia longa azul-marinho que poderia muito bem ser sua, uma bolsa marrom e o seu jeito de andar apressada, os cabelos castanhos ondulados eram mais longos que os seus, mas o volume era o mesmo, eles desciam lindos sobre a blusa preta de mangas longas, ela usava anéis de prata e uma pulseira preta que me lembrava seus acessórios. Meu olhar correu a avenida, esqueceu as pombas e se perdeu numa memória de cinco anos atrás, quando num dia de chuva, no trânsito pesado da Avenida Brasil, entre uma palavra e um gesto, eu lhe dissera o quanto o meu amor me pesava nos passos, você não entendeu, morremos entre orações adversativas e conclusões burguesas acerca de sua estupidez. Eu a ofendi. 

A cidade está entupida de amor e ódio. Num beco, homens picham frases pedindo amor, numa sala vazia um homem recebe sangue de estranhos e faz a via-crúcis do corpo.
Eu li no jornal que a lua está no signo de leão, recortei o horóscopo para montar uma aula de como construir o discurso genérico.
Os jornais ferem qualquer linguagem sã.
Escrevi cartas para estranhos e as abandonei nos bancos do parque Ibirapuera, li essa ideia em algum lugar. Eu as escrevi como se fossem para você, eu lhe pedi desculpa e lhe ofereci viagens a países orientais.
Um senhor de mais de 70 anos, imagino, achou um dos envelopes e eu sorri, tentando adivinhar quais as memórias que isso moveria, se felicidade, arrependimentos, qual é o sentimento que uma carta de amor suscita?
É bonito, é sim. Eu fiquei alegre, pensando que uma carta cheia de confetes, saudade, citações pessoanas, cheias do que é ser mulher, só pode fazer bem. Uma carta de amor é um ato rebelde, quase revolucionário, porque ofende a indústria do lucro, destoa a produtividade colérica, não vê o trânsito, não se importa com o aumento da passagem, com a entrega do projeto, com as malas, as notas, os métodos contraceptivos, as políticas educacionais, uma carta de amor é um vandalismo são de quem não está preocupada com a idade, as rugas, a renda, é um “muito obrigada” ao prazer terrorista de viver essa ebulição de uma cidade entupida.
Por isso, de hoje, como de ontem, como de sempre em diante eu escrevo cartas de amor, notas de amor aos pombos, aos senhores, às senhoras, aos anônimos bonitos e miseráveis que por ventura abram os envelopes verdes abandonados apaixonadamente nos bancos, nos pontos de ônibus, nas cadeiras dos bares, nas praças, nos espaços dos pombos, das migalhas, dos brincos de princesa.

Eu escrevo cartas de amor.


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