Acordei com um sorriso besta na cara. Depois de uns
dias cheios de amarras, de novo as coisas dançaram aquela dança bruta que não
sei aprender, a dança das coisas que são, sem pensamentos, sem tristezas, sem
cismas de cabeças errantes e cheias de grilos desafinados. Uma mochila cheia de
livros e uma cabeça cheia de dúvidas, eu desci na avenida de concreto e de
grama, subi pela rua calma, sábado de manhã tudo se acalma de ressaca ou de
cansaço, se acalma. Uma alegria de estudante quando quer aprender, uma liberdade
nos passos, uma liberdade de cigana que fica e tem um filho com o mesmo repente
que vai e não volta nunca. Minhas mãos folhearam os livros, meus olhos espiaram
homens e mulheres, lhes adivinhando a angústia diante da disciplina ossuda e
seca dos livros acadêmicos, dissecando poesias do século XVII, lambendo a
doçura de Erasmo de Rotterdam, comendo as análises de Bocage, cutucando a
pornografia de Hilda.
Um homem varre a rua e respira feliz, a filha mais
velha entrou numa universidade pública, ele respira como um homem que deu o que
acreditava, uma formiga trabalha, um urubu come uma carcaça de um bezerro, recém-nascido,
recém- morto, já comida de urubu.
Eu enfrento meu sertão dentro de uma biblioteca
católica, branca e rica, eu leio a violência com que teceram as lutas, enxergo
as letras cheias de pus com que ainda massacram os homens, penso nos meus
boletos atrasados e na minha dificuldade de ver a liberdade dentro da sala de
ar condicionado e de solidões compartilhadas.
A dança do mundo, o som que os ouvidos filtram em
vozes, o que eu sei ouvir é polifônico e uníssono.
Eu respiro com liberdade, faço as análises, bocejo,
converso com versos de Stela do Patrocínio, com as antíteses que Foucault descortinou
e penso nas novenas do sertão em tempos de seca, tudo é unidade que me fez.
Tomo um café na rua e converso com seu Zé, homem culto, aprendeu a ler depois
dos 18, agora na saúde de seus 60 anos, ler poesia de Patativa, e relembra com
esmero as emboladas do sertão, dona Maria, minha vizinha há cinco anos me diz
como eu devo não cuidar do meu pé de mandacaru e eu sorrio e lhe digo histórias
de livros antigos, ela me diz que eu deveria sair mais, faz uns meses que só
estudo, e eu penso, não me explico, dona Maria entende o mundo há mais tempo
que eu , isso merece meu respeito, eu penso que é preciso silenciar, eu espio
melhor essa dança que eu não sei ainda os passos.
Fora da biblioteca, as arvores viçosas desse sudeste
bonito também me espiam, pulsando e mostrando seus troncos cobertos de
parasitas necessários, as arvores respiram o mesmo tempo que eu, não há linguagem
mais bonita do que o silêncio que compreende o outro.
Em tempo de correntezas é preciso assentar, fazer
sentir essa essência de nervos que ainda são irmãos.
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