"Nó", 2013 - Simone Huck
Você esfrega o
rosto com o dorso das mãos e do seu nariz escorrem duas rosas sem
espinhos. Nada mais sangra. Sua coriza é uma primavera sem esperas.
Você abre o armário e limpa o solado de todos os sapatos. Deseja
pisar coisas novas. Caminhos. Jardins. Pessoas. Você está cansado.
Muito cansado. Dizem que é primavera?
Há três dias um
caroço de feijão mora no buraco do seu terceiro molar. Hoje de
manhã, enquanto você ensaiava um sorriso para o espelho, o caroço
germinou. Saltou da boca uma semente mentirosa. Visível.
Tateável. Espanto. Dizem que é primavera?
Obstinado, você
vai até a cozinha. Abre a geladeira. Tira as vasilhas coloridas do
congelador e coloca em cima da pia. Pega o liquidificador no armário.
Despeja no copo um pouco de água suja da torneira do prédio sem
manutenção. Abre as vasilhas. Olha as flores congeladas. Suas
esperas descansam em dezoito graus negativos. Retira duas amendoeiras
em flor, petrificadas. Dizem que são as flores da esperança.
Acrescenta um vaso congelado de bromélias; resistência. Duas
gérberas que estavam no pote azul; nobreza. Dois gerânios de flor
prateada; recordação. Três rosas vermelhas, árticas, do pote
amarelo; paixão. Uma dúzia de crisântemos brancos trazidos do túmulo de sua avó; honestidade. Quatro cravos roxos recolhidos nos últimos casamentos que invadiu; solidão.
Você tritura tudo. Sorri alguma coisa gelada e
amarga.
Não há açúcar.
Não há gosto.
Não há cor.
Sua traqueia
dilata. Não há espinhos. Você não bebe nenhuma lembrança. Seu
estômago não reconhece nenhuma memória. Seu fígado não sintetiza
um canteiro capaz de germinar um grão de esperança. Seu coração é
um deserto salpicado de sal. Sua língua morreu. Dizem que é
primavera?
Que Vivaldi, que nada. Quatro estações e uma tristeza moram nesse texto. Que coisa mais bonita. Bonita, mesmo.
ResponderExcluirTexto sensacional!... Uma maravilha! Abraço!
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