segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

a INVEJA DOS BEM-AVENTURADOS - por Vinícius Linné

O doutor inveja o lixeiro que passa. A despreocupação do canto, a limpidez do riso, o grito para o companheiro de caminhão, o assovio para as pernas brancas que passam. Ele queria aquilo. Aquela vida. Aquele cheiro que com o banho sairia. O doutor parece ter sempre o mesmo cheiro. A mesma colônia, o mesmo perfume que o banho de cada dia só repõe. Ele queria um cheiro azedo, penetrante, do qual poderia livrar-se no fim do dia.

O doutor inveja o trabalhador que volta da fábrica. O macacão suado, a testa suja, o celular tocando uma música popular qualquer, o sentido da vida exposto, tudo simples, tudo braçal, tudo bruto. Enquanto isso, o doutor ouve clássicos da música, refresca-se no ar condicionado, trabalha em complicados casos médicos e não vê sentido na vida que vê.

O doutor inveja o nordestino que vende redes. Os produtos expostos, as melodias das vozes, a possibilidade de viajar e foder mulheres alheias. A despreocupação, as viagens em ônibus velhos, cidade após cidade, a preocupação do dinheiro que não veio, a fome, o cachorro quente na esquina, quando dá. Enquanto isso, o doutor volta à mulher, aos filhos e à pose que o aprisiona durante o interminável jantar.

O doutor não inveja o sucesso, não inveja a complexidade do espírito, não inveja a fama. O doutor só inveja o que é medíocre e puro e cheira a ocre. O doutor inveja a única coisa que não é capaz de ter. A pobreza de espírito. O céu na Terra. A felicidade, enfim.

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