"Colisão", 2012 - Simone Huck
Entro no meu carro e
ainda não amanheceu. É segunda-feira e tudo parece estático. A
vida pendurada na previsibilidade de um prego invisível e
rotineiro. Antes de sair procuro uma música no iPod, a trilha
sonora que abrirá mais uma semana de sono e cansaço. Penso nele.
Ele não combina com meu iPod. Eu não combino com o mundo.
Talvez ele não combine com nenhum dos dois.
Eu passava dos 30 quando, num domingo
despretensioso, ele beijou pela primeira vez a minha testa e
disse “eu te amo, minha filha”. Ali, ele salvou minha vida.
Resgatou de uma só vez sua ausência brusca, bruta, pouco
lapidada. Eu e meu pai somos dois desconhecidos que se amam. Ele é
um homem calado, pouco sei dos seus segredos. Ele pouco sabe dos
meus. Nossos silêncios gritam.
Ligo o carro. O iPod
toca uma música calma, quase calada. Continuo pensando nele. Uma
lágrima quer saltar dos meus olhos. Uma vontade de gritar. Uma
traqueia oclusa no tempo – meu e dele. Uma consciência tão
exata de que depois da sua morte, eu não serei mais eu. Eu não
terei mais ele. Ele não terá mais ninguém.
Durante a madrugada, no
pouco dos sonhos que consigo lembrar, ele morria. Sou uma pessoa que
não lembra de nada quando acorda. Mas ao abrir meus olhos de
lágrimas, ali estava ele. Algumas realidades aguardam o momento
infalível de estrearem no palco dos nossos dias. Às vezes, a vida é
um anúncio gritante em outdoor.
Procuro pelos meus olhos no
retrovisor do carro. Encontro minha covardia. Um dia ele não mais
estará ao alcance do meu abraço.
Tenho quase 40 anos e
poucos medos acumulados. Logo cedo o seu silêncio áspero me ensinou
a não temer a vida. Ele não me emprestou um dos seus elevadores pra
que eu subisse ou descesse com segurança. Disse pra eu fazer tudo
usando cordas, escalando o bem e o mal. Hoje muita coisa mudou.
Deixamos de ser tão silenciosos em nossos encontros. Há poucas
sombras entre nós. Há muitas sobras. Hoje quem o leva ao médico
sou eu. Sou eu quem escolhe a armação moderna dos óculos que ele
usa. “Pai de artista deve usar óculos de artista”, brinco,
enquanto o faço comprar uma armação preta e amarela. Ele sorri e
me pergunta se está bonito, só depois que garanto o sim, ele saca o
cartão e paga a minha escolha para os seus olhos. Hoje é ele quem
precisa confiar em mim. Hoje sou eu quem anseia um outro beijo em
minha testa antes da sua fria partida.
Nos últimos dias abraço o desespero diário
da sua ausência. Sofro calada um futuro próximo que mudará nossas sombras.
A morte é a única certeza da biografia.
Desço do carro e chego
ao trabalho. Aperto o botão do elevador e ao entrar, procuro ávida
a marca do equipamento. Sorrio. Ali está as mãos do meu pai. Estou
salva naquele cubículo de metal. Meu pai é um homem que fabrica elevadores. Em seu
ofício de garantir a subida ou a descida do coletivo anônimo.
Cresci procurando pela
cidade os elevadores que ele criou. E quando entro em um que não há
as mãos dele, não me sinto segura. Sempre tenho medo de cair.
Sempre acho que alguma coisa não vai dar certo e a claustrofobia
fica perto de mim na subida incerta. Só nos elevadores feitos por este homem é
que me sinto livre.
O elevador sobe macio
enquanto leio as quatro letras que compõem o
nome da empresa das suas caixas de metal. As últimas duas letras também
estão no meu nome: “IS”. Pura coincidência. Aposto que meu
pai nunca pensou nessa relação. Sou eu quem precisa da segurança
dos seus elevadores. Ele só precisa da minha segurança em aquecer
suas mãos enquanto o levo ao médico.
O elevador chega. Sou a
última a sair. Procuro mais um pouco do seu abraço metálico. Ali,
sempre estarei segura.
Olho a cidade cinza, mais um dia nasce. O
homem que fabrica elevadores também já está trabalhando. Sorrio.
Do meu lado a certeza de que passarei a vida inteira notando todos os
elevadores só pra saber se foi ele quem fabricou. Só assim saberei
que as pessoas estarão a salvo quando subirem ou descerem. Eu também
estarei. Sim, meu pai é um homem que fabrica elevadores. Os
melhores elevadores do mundo.
Décimo sétimo andar. Portas
em perfeito alinhamento se abrem. Posso começar a escalar o dia.