Performance: Alice Maria / Foto: Simone Huck
Ela
queria escrever algo vivo. Imaginar as hemácias em perfeita autólise
no ar, no caminho entre a intenção e a palavra escrita no papel.
Queria escrever vírgulas vivas, exclamações vivas, verbos e
palavras vivos. Mesmo sabendo que o tempo já era morto, passado,
desbotado.
Furou o dedo com uma agulha. A sua intenção habitava um pretérito imperfeito. Memórias mofas atrás da
porta. Desejos vestindo roupas amareladas pelo tempo que não
conseguiu dizer. Não
queria escrever com tinta. Queria escrever com sangue quente. Quem
sabe escrevendo com sangue fresco não conseguia, por segundos,
ressuscitar coisas mortas? Deixou pingar o sangue dentro de um recipiente frio
e com a ponta da pena escreveu em um papel roído pelas baratas do
armário:
O
passado nos conjuga. A
sentença nos julga.
As
escolhas nos separam.
Dos
nossos fatos somos outros fatos.
Das
nossas sombras, outras sombras.
Já
habitamos o passado, amor.
E só dentro da fotografia pendurada na
parede do quarto é que estamos felizes e próximos.
Estende
sua mão?
Desce
dessa parede como Cristo desceu da cruz,
mas desce vivo,
e não
confunda meus braços com os de Maria,
porque não sou sua mãe,
apenas quis ser sua mulher.
Escreveu
e tingiu o sangue do recipiente com uma gota de lágrima escorrida do
seu coração que compulsivamente chorava. Escreveu, amassou o papel
e o levou até a boca. Mastigou palavra por palavra. Sentiu o gosto
do sangue que ainda estava quente e fresco. Segundos de um
amargo presente invadindo um corpo denegrido pelo passado. Mastigou,
mastigou e mastigou. Quando o papel virou líquido grosso em sua
boca, capaz de não haver nenhuma mísera palavra digna de
entendimento, foi que engoliu. Nesse momento ajoelhou e com a ponta
dos dedos foi acompanhando externamente o percurso interno das palavras líquidas: língua,
faringe, esôfago, estômago. Sentiu que algumas palavras quiseram
tomar a direção do coração mas não conseguiram. O êxodo tinha
um destino frio determinado.
Ajoelhou
e suplicou um segundo de libertação. O silêncio foi o mais
hediondo dos últimos anos. Nenhuma resposta despencou das paredes,
do céu ou das imensidões que habitam coisas que não mais
acreditava. Deitou de
lado. O chão era um rio turvo de lágrimas e suor. Quis nadar,
remar, navegar pra bem longe dali. Fechou os olhos e dormiu oito dias
seguidos. Oito dias sem pensar, oito dias sem sentir, oito dias sem habitar o passado, abraçada por lembranças amareladas e velhas.
Abriu os
olhos oito dias depois quando sentiu uma língua lambendo seu
silêncio estático. Levantou e ao levantar percebeu que estava sem
coração. Havia uma cratera em seu peito. Ao lado, um cachorro magro
devorava o último pedaço do seu ventrículo direito, feliz, alimentado.
Ela
sorriu. Olhou o dia lá fora e finalmente libertou-se do seu velho
passado mofo.
Era tempo
de sair, tomar um banho, trocar as roupas e ir ao supermercado.
Era tempo
de comprar um novo coração.
Encantada com seu texto.São palavras que pulsam, pulsam. Comovem.Lindo.Parabéns.
ResponderExcluirObrigada, Dilma.
ExcluirA gente vai rasgando a alma, inventando e compondo... e cantando... rs rs rs.
Bj gde.
Visceral, Huck.
ResponderExcluirE olha só como víscera pode combinar com poesia.
Bravo!
Obrigada, Franco.
ExcluirMinhas vísceras são poéticas por natureza... rs rs rs... E já nem sei se isso é bom ou ruim... apenas SOU e ESCREVO.
Nasci pra isso, eu acho.... rs rs.
Bjs em vc. Obrigada pelos olhos.
S
Muito, muito, muito bom!
ResponderExcluirEngraçada a sintonia, escrevemos quase ao mesmo tempo um texto sobre coração.
Só não o coloco no blog porque ele está em outro caminho já...
Gosto muito da tua escrita. Muito. Gosto do modo como consegues encaixar com naturalidade o grotesco e o humano sem qualquer linha de divisão.
Parabéns!
Obrigada, cincodezembrista amigo!!!
ExcluirEsse ofício de escrever nos faz olhar o mundo diferente. Olhos atentos sempre. Mente aberta. A gente segue inventando, refazendo, sentindo, contando, omitindo... rs rs rs.
Obrigada pela leitura.
Bj bem grandão em vc !!
Te acompanhando aqui! Sempre!!! E gostando! Muito!
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