quinta-feira, 23 de agosto de 2012

compra-se UM CORAÇÃO - por Simone Huck

Performance: Alice Maria / Foto: Simone Huck

Ela queria escrever algo vivo. Imaginar as hemácias em perfeita autólise no ar, no caminho entre a intenção e a palavra escrita no papel. Queria escrever vírgulas vivas, exclamações vivas, verbos e palavras vivos. Mesmo sabendo que o tempo já era morto, passado, desbotado. 

Furou o dedo com uma agulha. A sua intenção habitava um pretérito imperfeito. Memórias mofas atrás da porta. Desejos vestindo roupas amareladas pelo tempo que não conseguiu dizer. Não queria escrever com tinta. Queria escrever com sangue quente. Quem sabe escrevendo com sangue fresco não conseguia, por segundos, ressuscitar coisas mortas? Deixou pingar o sangue dentro de um recipiente frio e com a ponta da pena escreveu em um papel roído pelas baratas do armário: 

O passado nos conjuga. A sentença nos julga.
As escolhas nos separam.
Dos nossos fatos somos outros fatos.
Das nossas sombras, outras sombras.

Já habitamos o passado, amor. 
E só dentro da fotografia pendurada na parede do quarto é que estamos felizes e próximos.
Estende sua mão?
Desce dessa parede como Cristo desceu da cruz, 
mas desce vivo, 
e não confunda meus braços com os de Maria, 
porque não sou sua mãe, apenas quis ser sua mulher.

Escreveu e tingiu o sangue do recipiente com uma gota de lágrima escorrida do seu coração que compulsivamente chorava. Escreveu, amassou o papel e o levou até a boca. Mastigou palavra por palavra. Sentiu o gosto do sangue que ainda estava quente e fresco. Segundos de um amargo presente invadindo um corpo denegrido pelo passado. Mastigou, mastigou e mastigou. Quando o papel virou líquido grosso em sua boca, capaz de não haver nenhuma mísera palavra digna de entendimento, foi que engoliu. Nesse momento ajoelhou e com a ponta dos dedos foi acompanhando externamente o percurso interno das palavras líquidas: língua, faringe, esôfago, estômago. Sentiu que algumas palavras quiseram tomar a direção do coração mas não conseguiram. O êxodo tinha um destino frio determinado.

Ajoelhou e suplicou um segundo de libertação. O silêncio foi o mais hediondo dos últimos anos. Nenhuma resposta despencou das paredes, do céu ou das imensidões que habitam coisas que não mais acreditava. Deitou de lado. O chão era um rio turvo de lágrimas e suor. Quis nadar, remar, navegar pra bem longe dali. Fechou os olhos e dormiu oito dias seguidos. Oito dias sem pensar, oito dias sem sentir, oito dias sem habitar o passado, abraçada por lembranças amareladas e velhas.

Abriu os olhos oito dias depois quando sentiu uma língua lambendo seu silêncio estático. Levantou e ao levantar percebeu que estava sem coração. Havia uma cratera em seu peito. Ao lado, um cachorro magro devorava o último pedaço do seu ventrículo direito, feliz, alimentado.

Ela sorriu. Olhou o dia lá fora e finalmente libertou-se do seu velho passado mofo.
Era tempo de sair, tomar um banho, trocar as roupas e ir ao supermercado.
Era tempo de comprar um novo coração.

7 comentários:

  1. Encantada com seu texto.São palavras que pulsam, pulsam. Comovem.Lindo.Parabéns.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada, Dilma.
      A gente vai rasgando a alma, inventando e compondo... e cantando... rs rs rs.
      Bj gde.

      Excluir
  2. Visceral, Huck.
    E olha só como víscera pode combinar com poesia.
    Bravo!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada, Franco.
      Minhas vísceras são poéticas por natureza... rs rs rs... E já nem sei se isso é bom ou ruim... apenas SOU e ESCREVO.
      Nasci pra isso, eu acho.... rs rs.
      Bjs em vc. Obrigada pelos olhos.
      S

      Excluir
  3. Muito, muito, muito bom!

    Engraçada a sintonia, escrevemos quase ao mesmo tempo um texto sobre coração.
    Só não o coloco no blog porque ele está em outro caminho já...

    Gosto muito da tua escrita. Muito. Gosto do modo como consegues encaixar com naturalidade o grotesco e o humano sem qualquer linha de divisão.

    Parabéns!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada, cincodezembrista amigo!!!

      Esse ofício de escrever nos faz olhar o mundo diferente. Olhos atentos sempre. Mente aberta. A gente segue inventando, refazendo, sentindo, contando, omitindo... rs rs rs.
      Obrigada pela leitura.
      Bj bem grandão em vc !!

      Excluir
  4. Te acompanhando aqui! Sempre!!! E gostando! Muito!

    ResponderExcluir

o Febre CRÔNICA agradece sua leitura e comentário.