terça-feira, 21 de agosto de 2012

uM HOMEM NU- por Dilma Alencar


Um gato preto e gordo caminhava em direção à cama, o quarto escuro cheirava a mofo, uns santos sobre o criado-mudo, um homem inquietava-se entre cartas refeitas, relidas.
Engoliu as esperanças mortas. Ficou horas olhando o gato, invejando a existência do animal. A angústia é o pão de José.
Enfim, ele levantou, tomou conhaque, dirigiu-se ao banheiro, em frente ao espelho decidiu fazer a barba. Navalha e sabonete à mão. O rosto no espelho evidenciava o homem: olhos claros e graves, boca grande e séria. A lâmina deslizando no rosto revelava beleza e juventude. O olhar duro mentia uma virilidade perdida.
Nu, o desalmado homem lavava o corpo na estúpida crença de que a água lavasse sua força, apagasse os nós que fizera com as mãos.
Vestiu-se: terno e gravata, rosto limpo, cabelo arrumado. Voltava à rotina de papéis.
O tempo comerá sua carne, a memória marcará seus sinais: nos passos tortos, camisa bem passada, pasta de couro, sapatos novos.

O dia, fresco em suas cores, doía o olhar do triste homem. Alimentados, homem e gato seguem os imperativos do dia.
A vida rompe de viés, de vertigem.
Quem por ventura olhasse pela janela do quarto veria uma nuvem de borboletas coloridas. Sem perceber, ele dormia com borboletas.
Embora as pedras pesassem toneladas, as grades lhe agredissem o corpo, uma esperança mansa despontava. Na rua, uma menina brincava de fazer bolhas de sabão. Um menino soltava pipa. José esboçou um sorriso, no canto da boca, ainda tímido à vida que bailava aos seus olhos.
De volta ao quarto, agora mais calmo, ele subiu na cama e desamarrou a corda que colocara uma semana atrás, desfez o laço, foi à cozinha pegou a faca mais afiada que possuía e cortou a ideia, a arapuca.
Assustado, ele percebeu uma borboleta amarela que voou do seu lençol e pousou na sua janela.

3 comentários:

  1. Muito bom, minha cara.

    Me vi refletido nos mesmos espelhos, la liquidez da bolha de sabão e, até, no vidro da janela em que pousou a borboleta.

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  2. Obrigada pela leitura.Seus textos são lindos.

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  3. Que possamos sempre ser "salvos" pelas borboletas...
    Lindo texto Dilma, lindo. Fui imaginando o homem em toda a sua rotina de traça e depois, as borboletas anunciando um novo recomeço.
    Parabéns pelo texto.

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