quinta-feira, 16 de agosto de 2012

a mulher LILITH - por Simone Huck


"Do que não vemos", 2012 - Simone Huck
Preparo uma xícara de chá, penso em Lilith. Tenho dúvidas sobre sua procedência, sua insistência, sua permanência. Vez ou outra, enquanto arrumo a casa e a cama, encontro penas longas e brancas que me fazem acreditar que ela era um anjo, noutras, encontro pedaços de garras e um leve cheiro de enxofre invade o quarto, dignos de um demônio.
Quem afinal era você, Lilith? Deusas lunares? A figura igualitária de Adão? A briga com Eva? O abandono de um Éden em conflito? Te questionar muitas vezes me anula mas não vou desistir. A dúvida é púrpura, ácida, demagoga e inesperada. Te perguntar é como abraçar coisas mortas e vivas, quase que ao mesmo tempo.

Eu no sofá, ela na tela, sorrimos um para o outro. Ela gostou dos meus óculos, eu gostei do seu chapéu. Lilith saiu da TV enquanto eu assistia, atônito, um filme sem muita graça. Abandonou seu mundo surreal e invadiu minha realidade. Pisou no meu tapete colorido da sala e com a ajuda dos braços saltou de dentro da tela e sentou-se do meu lado. Tocou meus lábios com seus dedos carregados de intenções. Experimentou meus óculos enquanto eu vesti o seu chapéu. Ficamos horas falando de tudo e de nada. Parecia que já nos conhecíamos por todas as possíveis gerações. No final, Lilith estava nua embaixo de mim e passamos os próximos anos entre orgasmos e orgias.

Às vezes me convenço de que Lilith foi um vício, uma cilada, um dia de guerrilha com chuva. Às vezes sei que ela era uma extensão do que eu gostaria de acreditar. 

Passamos mais de setecentos dias juntos e vez ou outra, Lilith abria sua caixinha de ferramentas pegava uma corda e com toda a sua habilidade, me enforcava. Em outras vezes ia até a cozinha e preparava nosso jantar regado de especiarias, entre dentes que sorriam algo vago.
Foram dias que misturavam guerra, paz, enchente. Dias glaciais, infernais, eternos. Eu desenhava Lilith. Eu engolia Lilith. Eu vomitava Lilith.
Numa tarde crisântemo, ela, vestida com seu lado de garras, olhou fundo nos meus olhos e disse: “não quero alguém como você ao meu lado”. Fez as malas, chorou e antes de sair me beijou como se beija um eterno amor.

Depois daquele dia nunca mais nos falamos. Não sei por onde ela anda, nem em qual filme está em cartaz. Se trocou o chapéu, a dúvida ou se encontrou a sua certeza. Até hoje não sei se ela era um anjo ou um demônio. Se devo considerar as asas ou as garras. Tudo o que sei é que sempre vou permanecer com Lilith entre minhas pernas, dedos e interrogações. E ela vai escorrer sempre, eu sei.

O chá esfriou. Isso é que dá perder tempo com anjos e demônios.

7 comentários:

  1. Lindo, texto lindo.Gosto muito de suas letras, cada dia com mais encantos. Parabéns!

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    1. Obrigada, Dilma. Por todo seu carinho e leitura. Bj grande.

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  2. Ah, mas estes textos estão cada vez mais interessantes. Adorei, minha amiga.
    Bj grande

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    1. Mas que prazer tê-la por aqui, amiga. Adoro seu olhar e leitura. Obrigada pelo carinho. Bj brasileiro !!!!

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  3. Uma breve crônica para falar de amor. Entre (muitas) outras coisas. Taí: gostei.

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    1. Obrigada pela olhar, pela leitura e pelo especial carinho minha amiga. Suas pontuações fizeram a diferença. Beijos e beijoa.

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  4. Anjos e dragões! Mistura triunfal! Amo ter acesso aos seus sentimentos atraves da arte!

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