"Do que não vemos", 2012 - Simone Huck
Preparo uma xícara de
chá, penso em Lilith. Tenho dúvidas sobre sua procedência, sua
insistência, sua permanência. Vez ou outra, enquanto arrumo a casa
e a cama, encontro penas longas e brancas que me fazem acreditar que
ela era um anjo, noutras, encontro pedaços de garras e um leve
cheiro de enxofre invade o quarto, dignos de um demônio.
Quem afinal era você,
Lilith? Deusas lunares? A figura igualitária de Adão? A briga com
Eva? O abandono de um Éden em conflito? Te questionar muitas vezes
me anula mas não vou desistir. A dúvida é púrpura, ácida, demagoga e inesperada. Te perguntar é como abraçar coisas mortas e vivas, quase que ao mesmo tempo.
Eu no sofá, ela na
tela, sorrimos um para o outro. Ela gostou dos meus óculos, eu
gostei do seu chapéu. Lilith saiu da TV enquanto eu assistia,
atônito, um filme sem muita graça. Abandonou seu mundo surreal e
invadiu minha realidade. Pisou no meu tapete colorido da sala e com a ajuda
dos braços saltou de dentro da tela e sentou-se do meu lado. Tocou meus lábios com seus dedos carregados de intenções. Experimentou meus
óculos enquanto eu vesti o seu chapéu. Ficamos horas falando de
tudo e de nada. Parecia que já nos conhecíamos por todas as
possíveis gerações. No final, Lilith estava nua embaixo de mim e
passamos os próximos anos entre orgasmos e orgias.
Às vezes me convenço
de que Lilith foi um vício, uma cilada, um dia de guerrilha com
chuva. Às vezes sei que ela era uma extensão do que
eu gostaria de acreditar.
Passamos mais de
setecentos dias juntos e vez ou outra, Lilith abria sua caixinha de
ferramentas pegava uma corda e com toda a sua habilidade, me
enforcava. Em outras vezes ia até
a cozinha e preparava nosso jantar regado de especiarias, entre dentes que sorriam algo vago.
Foram dias que
misturavam guerra, paz, enchente. Dias glaciais, infernais, eternos.
Eu desenhava Lilith. Eu engolia Lilith. Eu vomitava Lilith.
Numa tarde crisântemo,
ela, vestida com seu lado de garras, olhou fundo nos meus olhos e
disse: “não quero alguém como você ao meu lado”. Fez as
malas, chorou e antes de sair me beijou como se beija um eterno
amor.
Depois daquele dia
nunca mais nos falamos. Não sei por onde ela anda, nem em qual filme
está em cartaz. Se trocou o chapéu, a dúvida ou se encontrou a sua
certeza. Até hoje não sei se ela era um anjo ou um demônio. Se
devo considerar as asas ou as garras. Tudo o que sei é que sempre
vou permanecer com Lilith entre minhas pernas, dedos e interrogações. E ela vai escorrer sempre, eu sei.
O chá esfriou. Isso é que dá perder
tempo com anjos e demônios.
Lindo, texto lindo.Gosto muito de suas letras, cada dia com mais encantos. Parabéns!
ResponderExcluirObrigada, Dilma. Por todo seu carinho e leitura. Bj grande.
ExcluirAh, mas estes textos estão cada vez mais interessantes. Adorei, minha amiga.
ResponderExcluirBj grande
Mas que prazer tê-la por aqui, amiga. Adoro seu olhar e leitura. Obrigada pelo carinho. Bj brasileiro !!!!
ExcluirUma breve crônica para falar de amor. Entre (muitas) outras coisas. Taí: gostei.
ResponderExcluirObrigada pela olhar, pela leitura e pelo especial carinho minha amiga. Suas pontuações fizeram a diferença. Beijos e beijoa.
ExcluirAnjos e dragões! Mistura triunfal! Amo ter acesso aos seus sentimentos atraves da arte!
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