Algumas memórias cheiram mofo, não há como evitar. Minha saudade particular não existe para os meus irmãos. Somente eu cresci naquela humilde casa, talvez, minha saudade nem alcance meus pais. Enquanto eu crescia com a única obrigação de absorver tudo, eles trabalhavam exaustivamente para comprar um lugar melhor para morarmos. A mãe costurava, o pai, projetava. Sonhavam uma casa de concreto, fria e grande para a chegada dos meus irmãos, enquanto eu, nasci naquele palácio secreto, com um quintal grande repleto de árvores, terra e histórias; capaz de abrigar meus maiores delírios infantis. Eu sempre tive sorte. Até em ser a primeira a abandonar o útero da mãe e ganhar o mundo naquele lugar que a minha memória evoca. Algumas luzes sempre estarão acesas pelos corredores escuros da alma.
A lembrança é uma realidade inventada, não existe mais. Nem eu existo mais. Nem a casa, nem o tempo, nem meus pais. Estaciono o carro na rua onde cresci. Tudo era mais largo, haviam tantas casas. Onde todos foram parar? As árvores também fizeram as malas, partiram num dia em que não pude perceber. Abro a janela do carro, minha casa está soterrada debaixo de um prédio de vinte e cinco andares. Dos escombros, minha lembrança é um fantasma. Ali, debaixo daquele edifício, grita a casa que me fez. Está o quintal de terra, as árvores, o portãozinho branco de madeira decorando a entrada e um chão vermelho, onde minha mãe ajoelhava para encerar enquanto eu, sempre mais menino, empinava uma pipa do lado de fora. Ela ajoelhava para limpar. Hoje ela ajoelha para existir. Havia um tempo remoto apagando nossas crenças. As minhas e as da minha mãe.
Do nada que restou gritam lembranças tomadas por um novo edifício. Já não reconheço quem sou. Também perdi a casa da minha infância. Diante dos meus olhos formam-se duas imagens; passado e presente deram as mãos mas não tornaram-se amigos. Do subsolo do prédio, as unhas da casa soterrada cravam a pele da minha saudade. A vida é um deserto sem a mínima chance de água. Morreremos sem nossas sombras.
Desço do carro e insisto na busca. Quisera ter uma pá capaz de desenterrar minha casa e enterrar o prédio. Os desabrigados dos vinte e cinco andares se uniriam a mim. Não haveria solidão se dividíssimos saudades.
Fecho os olhos e os meninos e meninas gritam. Minha intenção veste azul mas não consegue me salvar. As mães pegam os piolhos das nossas cabeças. Os pais tentam corrigir a lição de casa enquanto a gente só queria fugir pra rua e começar a corrida nos carrinhos de rolimãs. Toda sexta-feira era dia de ficarmos até mais tarde na rua. Fazíamos corridas, competições. A meninada gritava. Os pais pediam para falarmos mais baixo. Quem obedeceria? Nossos joelhos eram marcados pelo asfalto. Nossas mãos, marcadas pelo alto das árvores. Havia urgência e cor em nossos gritos. Debaixo das minhas unhas ainda está o giz das amarelinhas brincadas naquela rua. Com os olhos fechados diante do cemitério da minha casa, uma procissão de fantasmas carrega minha memória enquanto não consigo desenterrar infâncias.
Uma lágrima escorre dos meus olhos. O chão que a recolhe é outro. Estou em outro país. Não há fronteiras amigas. Não vejo abrigos noturnos.
Os portões do novo edifício se abrem e os meninos entram em bandos, vindos da escola. Um deles se separa do grupo, vem chutando uma bola, parece querer mais rua. Olha para mim, ali, chorando parada na frente do prédio e pergunta: “se eu te der a minha bola, você joga comigo e para de chorar?” Eu pergunto se ele mora ali. "Sim, aqui é a minha casa, você também mora aqui?" Moro, mas a minha casa está debaixo da sua. "Qual é o seu apartamento?" Não moro em um apartamento, moro na casa do subsolo. Ele não entende nada. Sorri, joga a bola nos meus pés e me pede para chutar. Quer ser goleiro quando crescer, eu, só quero fechar os olhos e acertar o chute no gol da minha infância, aquele, que montávamos na rua para ver o tempo passar. O tempo que não sabíamos, soterraria tudo tão rápido que não mais nos reconheceríamos.
Do outro lado da rua os meninos gritaram: GOL.
Brindo uma pequena paz.