terça-feira, 4 de setembro de 2012

aLITERAÇÕES _ por Dilma Alencar


Ela me olhou sem doçura nenhuma, o modo imperativo que conjugava seus verbos enfraquecia a semântica do discurso, esse mais persuasivo que comovente. Por preguiça, eu não quis jogar. Utopias casuais, fermentação ideológica, contratos. Eu só queria fazer um arroz, comer torrada com mel, comprar anéis de coco, fechar as páginas, esquecer as faixas, os faróis. Ela não viu a cor do céu, não reparou nas cores da minha coberta. Se ao menos ela me deixasse chegar perto sem verbos e não analisasse a minha sintaxe, mas tudo pode ser transformado em conto, em canto, pena eu não ser artista, se eu entendesse de recursos sonoros lhe faria um poema livre com aliterações em “l”, a professora disse que essas aliterações soam como água e limpam o texto, eu gostaria de lavar umas lembranças, além de café no seu tapete novo, eu sujei alguns papéis, talvez ela nem tenha visto, de repente nem eram dela, nem era ela.
Eu não disse nada, ela concentrava na fala toda a argumentação. E precisava de tanta informação, imagens, códigos, números exatos.  Por isso seu gosto por sonetos, a métrica, a estrutura. Não gostou dos haicais que risquei com giz rosa, na parede do quarto. A voz dela é rouca e sempre prende minha atenção, mesmo dizendo que quer mais açúcar ou dizendo de física quântica, prefiro quando ela pede açúcar.
Ela foi embora. Eu guardei uns substantivos que moravam em sua boca: estilete, quadro, tinta, espátula, pincel, formas. Com eles, estou montando um poema com métrica, rima e antes de enviá-lo farei escansão para assegurar seu prazer.
Vivemos pouco tempo juntas, uma semana.
A solidão dos meus móveis guardou um traço bonito do primeiro sorriso da primeira manhã. Eu, os livros, o fogão, as janelas, todos sorrimos quando ela acordou dentro do nosso silêncio. Abriu-se, de repente, um espaço maior, uma largueza dentro do quarto, meu abraço cresceu e a tive no colo.
Uma calma horizontal, plana, eu, pasma, besta de saber. Na última semana, as lembranças, as memórias que vêm na vertical e derrubam, sim, voltaram. Ela já não fez o café, eu já não a tive nos braços, as mãos se perderam, eu fiquei com saudade e a transformei numa de minhas dores verticais. Eu lhe enviei o poema, quando ele chegar ela vai saber de mim. A razão dela não dói, não comove. Ela move umas palavras em mim que são dela. Eu as dei, todas em rima. As coisas dela foram com o poema. Limpas como o poema. Eu e a solidão sorrimos. Ela anda tão bonita. Nós também.

3 comentários:

  1. Você é bonita!
    Bom ler tudo isso ainda de madrugada. Sorri.
    Bjs admirados!!
    S

    ResponderExcluir
  2. Achei tão lindo, acho que você ovidenciou até uma garoa hoje de manhã para eu ler com ainda mais saudade...suspiros.

    ResponderExcluir
  3. Obrigada. Lembranças em aliterações.

    ResponderExcluir

o Febre CRÔNICA agradece sua leitura e comentário.