quinta-feira, 13 de setembro de 2012

a OUTRA em mim - por Simone Huck





"Primeiro ato", 2006 - Simone Huck
Liquidificadores trituravam palavras sólidas enquanto me procurava dentro de mim mesma. Ambas não sabiam: nem eu, nem eu mesma. Era difícil engolir o tempo. Tudo era pedra e ponte. Vocabulário perdido repleto de falas mutáveis. Minha boca era a própria metamorfose do tempo. Eu, contradição dela em mim mesma. Era febril. Termômetros insensatos. Ambas, anteriormente gêmeas, brigando em exércitos bélicos pela ocupação dos meus sótãos. Quem poderia tomar-me mais? Uma era vermelha. A outra era azul.

Havia sal pelo caminho depois que a chuva cessou. Cheiro de folhas pisadas. Havia um amontoado de homens tomando o fim da tarde. Incautos, deliravam o sonho do que não viviam. A vida é um controle remoto sintonizando ávidos canais ilegais. Sem uma escolha que convença. Sem uma opção que comova. Sem nada que realmente preencha os vãos das nossas unhas, quadris e boca.

Insistia dentro do meu ouvido tudo o que eu não queria admitir. Ela era um eu no meu depois. Alguma parte cega de mim que morava no escuro. De mãos amarradas a intenção não conseguia ser tátil. Noites ocultavam a identidade das perguntas. Quando ela perguntava sobre mim, eu mentia. Quando eu queria saber dela, ela engasgava alguma coisa hortelã. Eu não sabia mais dizer do que eu era feita. Nem sabia medir do que era capaz. Ela, uma abelha desesperada dentro do meu peito tentando sair, tentando ser outra. Era outubro. Um mês antes de morrermos.

Abutres brigam pela carniça das coisas que não soltamos. Abraço abarcando restos. O beijo beija o vidro límpido de um depois sem boca.

Eu só precisava deixá-la sair de dentro de mim. Fórceps da certa incerteza.

5 comentários:

  1. " havia sal pelo caminho".Leio tudo com uma alegria e uma fundura, seus textos são fundos e lindos.

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  2. "Homens tomando o fim da tarde"... Que gosto terá essa bebida?
    De hortelã, como o engasgo da mulher?
    Ou de mel, como o que ficou no peito?
    Perturbador, Huck. Perturbador.

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    Respostas
    1. Perturbar também faz parte do meu caos, Franco. Obrigada pela amizade e leitura. Seus olhos são luz... Bjs

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  3. "Abutres brigam pela carniça das coisas que não soltamos."
    Encantei-me.

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