Pegou a faca, a bolsa e
saiu. Tinha pressa. Tinha água em seus olhos. Tremia. Entrou no
carro e errou algumas ruas dentro da sua certa incerteza. Ouviu a
música que ouviram na última primavera, antes da vida ser tomada
apenas por tempestades. Sua convicção fez com que achasse o caminho
da casa dele. Tocou a campainha. Ele atendeu por interfone. Ficou
admirado por ser ela e mesmo assim, abriu. Ela entrou. Ao vê-lo,
tantos meses depois, não sabia se chorava, se gritava. Estava
trêmula, pulmões vazios, tinha dificuldade pra pronunciar o menor
dos monossílabos. Ele estava mais velho. O tempo não poupou as velhas cartas de amor que ansiosamente trocaram. O passado foi inundado e ainda afogava.
Ficaram um diante do
outro por infinitos minutos. A vida era cinza. Os quadros das paredes sorriam sorrisos frios e falsos. Não se abraçaram, não
se tocaram, nada aconteceu. O universo pareceu
congelar. Os olhos, olhavam-se. As lágrimas de ambos
escorriam pelo carpete e subitamente aproximaram-se com pressa, e
com raiva, e com asilo, e com saudade, e beijavam-se, dividindo a
mesma poça de lágrimas por onde peixinhos
acasalavam.
Ela abriu a
bolsa. Pegou a faca e num movimento muito rápido, enfiou no coração
dele. Ele segurou a mão dela e não fez força. Abaixou os olhos. Ela empurrou mais um pouco. Seus
corpos tremiam, unidos ao hediondo que lhes pertencia. Abraçaram-se
tão forte que ambos lembraram o calor do primeiro abraço, o primeiro encontro, o
primeiro ato fugidio.
A vida era tão bonita nesse momento. Ele disse, meio atravessado, a palavra “obrigado” enquanto ela, ao
ser abraçada por ele que também trouxera uma faca irmã numa intenção gêmea, sentiu seu pulmão ser perfurado. Ela respondeu “eu que
agradeço”.
Lentamente
tombaram. Sangue e saliva uniram-se transformando tudo no
que mais queriam: uma poça líquida de sal, eternizada no canto da sala. Nesse momento os quadros descansaram em paz, coloridos.
O corte salva. Sempre salva.
ResponderExcluir"Faca irmã numa intenção gêmea". Belíssima construção, Huck.
Só a faca salva. Só a vida escorrida, salva.
ExcluirSó depois que esse texto foi publicado que me dei conta dele, dos dias, das coisas...
Obrigada, Franco.
Adoro o sangue dos seus textos, as cores entram nele numa dança tão bonita, num tango.Emocionam, sempre.
ResponderExcluirO sangue escorre e limpa a alma, Dilma. Talvez daí venha a recorrência. Mas está chegando o dia das flores como tema.
ExcluirObrigada pela fiel leitura e carinho.
Bjs
Émile Zola lhe daria os parabéns por isso, minha cara. E seria mais do que merecido.
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