quinta-feira, 29 de novembro de 2012

as PERAS também esPERAm - por Simone Huck

Sei que vou morrer antes de você chegar. Já se passaram tantos anos. Ainda espero. Ontem a noite, mais uma vez, fechei os olhos e seus passos pesados invadiram o assoalho da sala. Só os seus passos fazem a madeira ranger assim. Você tem um jeito pesado de andar.

Na geladeira, peras maduras esperam pela sua boca. Sei que será a minha, mais uma vez, a comê-las no seu lugar. Eu não desisto, nem as peras desistem de você. Nossas bocas confundem qualquer tipo de fruta. Outro dia abri a geladeira, coloquei todas as peras enfileiradas na mesa e fiquei falando de você. Agora as peras sabem exatamente o gosto da sua língua, o som da sua voz, o doce do seu hálito. Esperamos com avidez que a sua boca adentre a casa e a geladeira. Todos nós sabemos que você jamais chegará antes de morrermos. As peras morrerão antes de mim. Há uma certa ordem no caos da morte.

Ontem de manhã choveu. A chuva molhou o jardim. Peguei um pano e fiquei secando as flores. Ousei secar a chuva enquanto te esperava chegar. Sou pretérito perfeito que aguarda. Falei de você para o jardim. As flores brigaram comigo, não aprovaram minha honesta espera. Disseram que fidelidade tem prescrição, validade e durabilidade. Não entendi nenhuma dessas três palavras quando se trata de você. Nada disso se aplica a você. Muitas coisas não se aplicam a você.

Pintei outro quadro essa tarde. Ficou tão bonito. É colorido e denso como você. Espesso, grosso, com nuances opacas e gêmeas. Há pedaços seus tão iguais no mesmo lugar. Há pedaços tão distintos. Mistura de branco e preto. Tudo e nada.
Quando terminei, coloquei o quadro pintado de frente pra sua fotografia. Apresentei vocês dois. O quadro, denso, espesso e grosso, gostou da sua imagem no papel fotográfico. Achou seus dentes bonitos, seus olhos tristes, sua pele azul. Entendeu porque sempre vou amar e esperar você, que jamais chegará, nós sabemos. Já a sua fotografia olhou pro quadro com um certo ciúmes. Você nunca gostou de nada que pudesse dividir minha dedicação. Achou o quadro colorido demais, denso demais, grosso demais e virou as costas. Você virou as costas na fotografia e só resolveu olhar pra trás se eu prometesse moldurar o quadro e colocá-lo no porão da casa do meu pai. Nunca gostou dos moldes. Nem do porão da casa do meu pai. Nem de nada que pudesse te prender. Você nasceu livre. Talvez, ausente de tudo e em tudo. Você ainda não sabe quem é. Nem pra mim. Nem pra ninguém. Você nunca esteve em nada. Nunca esteve aqui. Sempre soubemos.

Sei que vou morrer antes de você chegar.
Ontem à noite, antes de dormir, descobri uma música nova na rádio da Palestina. Estamos todos em infinitas guerras. As estações do rádio, a Palestina, eu e você. Sorri e fiquei ouvindo, repetindo, repetindo, repetindo aquele novo som até dormir. Você teria gostado tanto de ouvir essa música nos meus fones de ouvido. A Palestina talvez dormiria em paz assim. 

Antes de apagar a luz, subi na escada e beijei a lâmpada quente do teto do quarto. Parece que a sua imagem está ali dentro daquela lâmpada, querendo atravessar com sua lança, o raio de luz. Você se parece tanto com a imagem de São Jorge, seu protetor.

Somos apenas imagens. Estados gasosos que serão dissipados pela urgência da espera.

Acenda a luz quando você chegar...

3 comentários:

  1. Porque nem tudo que é inanimado é ausente de ânima.
    Muito bonito, Huck. Muito.

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    1. Obrigada, Franco. Exatamente isso: quem disse que o inanimado é ausente de ânima? Feliz de quem percebe isso, penso. Bjs em você. H.

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  2. Lindo!

    Adorei a imagem de alguém contando seu amor às peras. Perfeito. As flores discordando, argumentando, mas esse alguém sem se convencer, sem matar a esperança, pedindo que se acenda a luz quando chegar - como se a chegada fosse coisa dada.

    Muito bom mesmo.

    Eu só tiraria duas coisas. Mas quem sou eu?
    LIndo.

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