segunda-feira, 5 de novembro de 2012

"DEPOIS DE PESQUISAREM POR ANOS a causa e a cura DAQUELA ÚLTIMA EPIDEMIA DE LOUCURA, DESCOBRIRAM QUE DE UM CERTO TRIGO AMASSADO FIZERAM PÃO, BOLACHA E CUCA." - por Vinícius Linné


"Wheat", 2012 - A. Stiop


Houve o dia em que também ela enlouqueceu. No meio da tarde, ela cansou de estar nos prédios de cimento azul e de janelas poucas. Cansou da grosseria animalesca do que – ela supunha – deveria ser humano.

Já era louca quando ela levantou derrubando a cadeira e, entre olhares pasmos, saiu. Assim. Saiu como se fosse fácil, como se não devesse satisfações, como se não cumprisse horários e batesse pontos e precisasse obedecer. Saiu como se não tivesse responsabilidades e como se – meu Deus – fosse livre.

Quando chegou em casa, encontrou a casa desavisada. Baratas enormes corriam gordas e surpresas pela cozinha. No banheiro, duas delas faziam amor sobre sua escova de dente. Decerto era assim que viviam todas as tardes, na casa quente e fechada, enquanto ela trabalhava para lhes sustentar.

Quem era, afinal, a praga invasora? De quem a casa era mais? Dela, que quase nunca estava, ou das baratas que transavam sobre a escova de dente? Das baratas, ora. Das baratas...

Deitou no chão pensando sobre, enquanto era atravessada por uma cascuda das mais ousadas. Cuidou para não dormir. Se dormisse as baratas poderiam ir parar dentro dela. Assim passou muito tempo. Louca, olhos abertos, fitando o teto. Quando as costas começaram a doer, levantou-se e saiu.

Saiu de casa como se não fosse sua casa, como se pudesse deixar as portas todas abertas, como se não se importasse, como se não deixasse nada para trás, como se fosse – meu Deus – livre.

Saiu a caminhar até a cidade sumir. Encontrou, então, uma plantação de trigo maduro. Ali enlouqueceu ainda mais. E, pior, entregou-se à própria loucura. Entregou-se à sensação do trigo arranhando a pele, à sensação de correr sem rumo. Entregou-se à brisa, ao som, ao sonho. A louca sorriu e gritou como desde criança não fazia, sempre correndo, sempre mais rápido.

Ela conseguiu destruir os sapatos na terra, colar os cabelos na testa e encharcar as roupas todas com o suor que lhe vazava do corpo. Agia como se fosse livre – meu Deus.

Ninguém por perto, coisa alguma, construção alguma. Só trigo e céu. E as pernas no movimento mecânico e intenso de correr. O coração disparado, o corpo todo trabalhando, funcionando, o som de suas próprias gargalhadas regando a plantação, a volta à terra, às origens, às primeiras mulheres e suas descobertas, suas fugas, suas experimentações. Jamais se sentira tão mulher, tão fêmea, tão livre.


Já exausta, deixou-se cair na terra. Esmagou o trigo embaixo de si e passou a ver pouco mais do que espigas e céu. Um céu que se desfazia em muitas cores até quase escurecer. Grilos e sapos e saracuras já começavam a gritar em um brejo ali perto, as primeiras estrelas brilhavam e o vento já soprava mais frio. A umidade tornava-lhe a pele pegajosa e estranha, o que fez com que a euforia aos poucos se desfizesse, como em traços de fina névoa.

Ela já não conseguia mais ser feliz e louca e mulher e livre.

Levantou-se, então, e bateu o trigo das roupas. Arrumou como pôde o cabelo. Deu uma olhada nos sapatos, estragados, definitivamente. Estava de novo sã, de novo infeliz, e foi assim que rumou de volta para casa. Precisava tomar um banho, comer alguma coisa, ligar a televisão, escovar os dentes e ir dormir. No outro dia era terça-feira. Precisava chegar cedo no emprego, pedir desculpas, explicar que fora acometida de um mal súbito e torcer para que fingissem compreender.

Na quarta-feira tinha a hipoteca da casa para pagar. E, além disso, havia dois gatos - e um bando de baratas - que dependiam dela para se alimentar.

4 comentários:

  1. Enlouquecer é uma tentação." Agia como se fosse livre – meu Deus." Experimentar a loucura, um pouquinho, gosto de como as imagens do seu texto vão alargando as possibilidades de significar.Parabéns,Linné.

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    1. Aiai. O pior é nem poder ser louco. Como ela também não pode.

      Obrigado, Dilma.

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  2. E esse 'meu Deus' no meio de tudo?
    Divino, Linné.
    Divino.

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