segunda-feira, 26 de novembro de 2012

eMIGRATIVA - por Vinícius Linné


Logo ela, a mais livrinha de todas nós, acordou um dia aprisionada. Foi assim, com susto: ela abriu os olhos e tudo era feito de escuridão. Abriu-os e piscou muitas, muitas vezes, porque tinha a impressão de que não os tinha mesmo abertos. E então, ainda precisou tocá-los para ter certeza. Só quando a ponta do dedo encostou no gelatinoso do olho, deixando nele uma digital nítida (para quem?), ela pôde saber que sim, estava mesmo de pálpebras arregaladas. Então o quê? Então de onde escuridão tamanha?

Era diferente. Era muito diferente das escuridões às quais estava acostumada. Tanto as reais, quanto as metafóricas. Não se via ponto de luz sequer, não se viam silhuetas, não se viam as coisas, simplesmente.

Onde estava ela?

Tentou lembrar da noite passada. Mas lhe parecia, fortemente, que tinha deitado em sua mesma cama de sempre. Estaria na cama? Não. Não porque tocava agora o chão e o descobria – com horror – orgânico.
O chão tinha a textura do que vive.

Tocou de novo, cheirou a mão. Um cheiro familiar e forte. Cheiro que lembrava os dias na fazenda, o sol lhe invadindo toda. E o pai, o pai assassinando uma vaca inteira, enfiando a faca na garganta e se cobrindo com o sangue dela. Era esse o cheiro. Apurou os ouvidos, como se fosse necessário, e então ela soube. Então ela lembrou. Lembrou da noite anterior, do colega desastrado e novo e feio. E lembrou de ele ter lhe ajudado a procurar um livro na biblioteca. E de como ele disse que ela cheirava a anis. E do quanto ela achou aquilo uma mentira. E do cheiro persistente e rançoso que ele próprio trazia, cheiro de vinho, amontillado.

Não! Não era possível.

Mas era a única explicação... Tocou novamente o chão. A mesma sensação de antes. Tocou a própria roupa e a sentiu coberta por um líquido espesso, viscoso. Passou os dedos pelos cabelos e eles já eram uma maçaroca de fluídos, fios e coagulação. Lembrou com horror das ilustrações daquele livro antigo. Aquele que ela tinha até medo de ler quando era menina. O único que ela detestava genuinamente: O Barba Azul. Lembrou da figura das mulheres, seus corpos no chão, alguns decapitados, o sangue tomando o aposento, o pânico da chave caída ali.

Chave!

Teria uma chave? Uma porta de saída? Se pôs de quatro a tatear no escuro, resistindo ao medo e ânsia que tinha de tudo que é vivo. Até bater, a poucos passos, em uma parede igualmente negra e orgânica. E assim fez, até se descobrir cercada. Não havia chave. Sequer havia porta.

Claustrofobia.

Ela precisava sair. Ela não fora feita para os espaços fechados, mas para as grandes vastidões. Assim gostava de pensar, mas era bem mesmo outra mentira. Nunca havia saído da própria vida, por exemplo. Ela mesma era uma prisão móvel. E estava em outra. Sim, as paredes se movimentavam. Entre golpes e silêncios, solavancos violentos a jogavam de um lado para o outro.

Precisava sair. Tinha que haver uma rota de fuga. Mas então onde? Por onde sairia do inóspito e imprevisível deserto em que se enfiara? Haveria ainda salvação? Ou seria esmagada até morrer?

Morte.

Em toda sua vida a solução passara pela morte. Em sua mente já havia acabado com a vida de mil maneiras diferentes. Mas era covardezinha. E se privava de tudo. Das experiências melhores até. Pela primeira vez considerou porém, entre um solavanco e outro, mais seriamente a alternativa. Mas como ali? Não havia nada. Nada com que se enforcar, nada para perfurar o peito, nada para beber e morrer envenenada. Seria ela obrigada a roer a carne dos pulsos? Seria assim?

Vomitou.

Se ao menos pudesse saber onde estava. Se ao menos alguém a pudesse ouvi-la e vir resgatá-la como sempre faziam. Mas ninguém vinha. E as paredes continuavam, aceleradas, ensurdecendo, subindo e descendo. “Por Deus”, ela queria dizer, mas já enchia a boca de vômito novo.

E de repente a resposta. De repente um barulho abafado de voz. Irreconhecível.

Da primeira vez ela não entendeu o que ele dizia. Vinha muito de dentro de si mesma aquele som. Da segunda, preparada, atentou melhor. E levou alguns segundos para, horrorizada, compreender. Era ele, o feio da noite, que em um arroubo de escritor cafona e tosco, repetia assim:

— Ela agora mora no meu peito, bem dentro do coração.

 F I M
* * * ou * * *

Coração. Coração. Coração.

Por isso a cápsula orgânica. Por isso o sangue. Por isso o cheiro de vaca morta.

Por isso a falta de chave e porta. Coração. 

Mas se ela estava dentro de um, então viria o sufocamento com o sangue. Ela se afogaria nas hemácias (quem sabe doentes) de um homem feio. Sim, sufocaria. A menos que... a menos que usasse unhas e dentes. A menos que corroesse aquele peito para sair dele. Logo ela, logo ela que por tantas vezes desejou essa prisão, só que em outros corpos. Corpos de homens não feios. Logo ela que sempre quis pertencer assim, que sempre tentou e não coube. Mas não era hora de pensar. Esqueceu todo resto. Começou. Arranhão por arranhão, bocada por bocada, a destruir o músculo que formava sua prisão.

Era inútil.

A cada pedaço arrancado, ficavam mais duras as paredes, pulsava mais o peito e fazia entrar mais sangue ali. De repente uma lufada de ar fresco. Um ponto de luz. Estaria salva? Teria uma faca assassina rompido sua prisão?

Os dois enfermeiros lutaram para lhe tirar da boca a espuma que forrava as paredes do quarto. E então veio o médico, com outra injeção, e tudo escureceu outra vez.

 F I M
* * * ou * * *


Mas ainda pulsava.

Ainda pulsava o coração do homem feio com ela lá dentro.


 F I M

5 comentários:

  1. Estou completamente SEM AR e quase SEM PALAVRAS!!!! Seu texto me colocou dentro do coração dele, junto dela. Acredita que me faltou ar????
    Linné? O MELHOR DO MELHOR!!!!! Esse texto foi o maior e mais fantástico de todos, pra mim, claro!!!!!!!
    Bravíssimo!!!!!!!!!

    Ainda sem ar,
    Si

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Obrigado, Si.
      E quase que nem veio parar aqui.

      Ainda bem que postei, então.
      Abraço.

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  2. Eta,Linné, como eu gosto dessas coisas que você escreve.Fique sentindo esse pulso, esse pulo de sangue, essas paredes , essas injeções e um medo, um medo danado, um medo meu significou esse texto bonito.
    Um xero.

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    1. Obrigado, Dilma.
      Depois de tanta angústia - imagine a minha enquanto sentia/escrevia, só mesmo esperando as suas respirações delicadas no próximo texto.
      Abração.

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