quinta-feira, 1 de novembro de 2012

te(N)são - por Simone Huck

 "Tensão", 2011 - Simone Huck
Ela pinta as unhas de azul e usa sapatos amarelos. Sorri concordâncias poéticas enquanto chora lágrimas de saudade enrolada numa coberta semântica. Acorda de madrugada para tomar um gole de café frio. Com a voz levemente rouca, grita com as baratas que tentam, no escuro da noite, devorar as palavras dos livros acumulados debaixo da cama. Ela dorme em cima de uma literatura que não compreende e ama.

Seu sexo é uma fonética incerta. Desde a primeira vez que nos vimos, sempre soube que ela seria a minha melhor análise sintática. Seus objetos indiretos agridem os meus diretos. Seu sujeito oculto me confunde. Ela gosta de batons alaranjados. Ontem a noite trocou o café por um copo de cachaça e dançou Luiz Gonzaga no canto da sala. Ela não tem medo da sua hedionda solidão. Lustra com alegria um porta-retratos vazio. Sorri para os desconhecidos na rua. Fala de Borges para o cobrador do ônibus com a mais pura insanidade íntima. Sua voz passiva me atiça.

Minha alma quer casar com a alma dela. Morar num cômodo úmido de uma biblioteca subterrânea. Sermos cúmplices de ácaros que se alimentam de vírgulas e papéis amarelados de tempo, ânsia e suor. Ser palavra, verbo e resposta sem dúvida, dúbia. 

Minha alma quer fazer amor com a alma dela em cima de um milhão de poesias rasgadas, entre rosas, espinhos e nenhuma santificação. Penetrar seus pretéritos imperfeitos, salivar ditongos entre sua boca laranja. Devorar hiatos entre seus pelos pubianos.

Amanhecemos abraçadas entre vãos e nãos.
Somos moradoras da periferia do nosso desencontro.
Em corpo, jamais seremos um livro na estante.

10 comentários:

  1. Texto lindo e forte, texto seu. Suas letras dançam tango.Um xero.

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    1. Há lugares "secretos" em nós que gritam vontades eternas, Dilma. Bjs em vc. H.

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  2. Quando a língua faz amor...
    Bravo, Huck! Bravíssimo!

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    1. Obrigada, Sil.
      Qdo a intenção tb faz amor...
      Bjs,
      H.

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  3. Minha cara, as vezes eu ainda me surpreendo com sua escrita e gosto disso. Gosto de ser surpreendida por escritos, tomá-los como sendo meu, emprestado é claro, enquanto leio. Se deixa ser pele e pronto. Fazemos amor. A palavra e eu...

    bacio

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    1. Coisa boa essa de fazer amor com as palavras, Lu. Essa é a minha melhor e maior FEBRE e te(N)são... rs rs. Obrigada pela leitura. Bjs, H.

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  4. Este é o meu preferido!
    Eu mesma.

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    1. Também gosto muito desse texto. Ele é muito bonito dentro de mim. Nem toda "impossibilidade" precisa ser dolorida. Agora sei qual é o seu preferido. Obrigada por ler, por comentar, por me indagar. Amo isso. Bjs, H.

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