quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

21.12.2012 - por Simone Huck

Abriu os olhos e do lado viu seu marido. Teias de aranha confundiam as frestas de sol que tentavam entrar pela janela. Era mais um dia. Mais um copo de café. Novas esperas. Ausência de esperança. Nada que fosse palpável de mudança. Não havia nem malas novas, nem coragens velhas. Atrás dos dentes escondia-se alguma palavra que não ousava dizer em voz alta. O silêncio conhecia sua aflição. Crenças desacreditadas. Não havia Deus para dizer o que era certo. Não havia santo ou altar para que pudesse ajoelhar ou suplicar. Nas suas pernas havia mais cansaços do que a mínima possibilidade de milagre. Os dias contradiziam-se. A pele queimava desejos novos. A vida oferecia caminhos antigos. Não sabia se era neste mundo. Não sabia se era no mundo passado. Não sabia de onde aquilo tudo apareceu para metralhar sua paz cinza. Tinha uma boca tão bonita. Andava tão calada. Era dia dos pais.


Ela estava de quatro. Ele estava por trás. Segurou seus cabelos loiros e pediu para que ela rebolasse. Nunca estavam satisfeitos. Ele tinha mais dez minutos pra gozar. Ela tinha mais quatro clientes para atender. A madrugada anunciava pela janela uma lua que parecia uma boca sorrindo. Ela não via graça, nem sorriso, nem lua, nem noite. Enquanto ele metia ela gemia mentiras. Ele gozou. Ela levantou e limpou o umbigo e a boca. Ele jogou cinquenta reais na cama. Ela passou uma vida inteira sem ouvir a palavra “eu te amo”. Cada um virou a esquina no sentido oposto. Sombras de uma madrugada úmida. Ele não estava satisfeito. Antes de voltar pra casa, precisava de mais algumas metidas. Tinha 150 reais no bolso. Ela pegou o celular e conferiu se havia novas mensagens. Estava na hora de Marcelo acreditar que ela era atendente noturna numa empresa de telefonia. Que era mulher séria. Que merecia ouvir ao menos uma vez “eu te amo”. Nada. Sem mensagens. Sem Marcelo. João era o próximo cliente e ela precisaria mentir bem. Era Domingo de Páscoa.


Ele era tão bonito. Desde menino se destacava da maioria. Cabelos longos e macios, lisos. Olhos ávidos, claros. Sorriso aberto. Conduzia o mundo com hálito de sonho bom. Era pessoa do bem. Ninguém poderia atestar o contrário. Casou. Não teve filhos. Construía casas. Comprou a dele de outro engenheiro. Quando fez trinta anos descobriu que não sabia o que era viver. Quando sua esposa preparou um jantar para pedir um filho, ele colocou sua melhor camisa para pedir o divórcio. Foi na mesma noite. Cada um tratou de engolir suas próprias vírgulas. Ele vendeu tudo. Resolveu sair nu na noite mais fria do ano. Sentou debaixo de uma árvore molhada. Abraçou suas pernas e ficou vendo os carros passarem. Era Natal.



Mais um cigarro. O cinzeiro estava cheio de intenções. Mais uma dose de vodca. Era impossível permanecer sóbria. Era viciada. Consumia todas as tendências do mundo dos destilados. Era conhecida pelos malucos na boca de fumo. Ia ao médico para pegar receitas azuis. No armário do banheiro colecionava psicotrópicos. Tinha um estado de pasmaceira tão natural que achavam que era loucura e não vício. Talvez excesso de leitura. Todos a conheciam e gostavam dela. Era moça estudada. Dava palestras para os adolescentes da igreja. Dava aula na universidade a noite. Nos finais de semana visitava as exposições temporárias da cidade e todos esperavam que ela publicasse uma mínima nota falando a respeito. Tudo o que ela falava produzia efeito. Tudo o que ela ingeria, também. Chegava em casa sempre sozinha. Tinha sete gatos e dois passarinhos machos que moravam na mesma gaiola. Uma gata conversava com um dos passarinhos. Era o único erotismo presente naquela casa. Toda a íntima conversação da vida dela era lacônica. Os bichos ficavam na maior parte do tempo estáticos, olhando o vaso pendurado na janela do vigésimo sétimo andar. As nuvens faziam parecer que o vaso dançava. Eram todos lunáticos ou, talvez, sensatos em demasia. Guardava a maioria dos livros debaixo da cama. Às vezes gostava de comer traças gordas. Eram suculentas e frias. Era como comer restos de livros. Restos de palavras. Restos do resto. Vomitou antes de apagar a luz e esperar um outro dia. Era dia de Finados.



O calendário marcava a mundial histeria: 21.12.2012. Nada tremeu. Nada mudou. Sorriram um sorriso cinza de quem nada espera. Até os dentes se acostumam à previsibilidade da boca. Não era feriado para nenhum deles.


Um comentário:

  1. Minha cara, tão bom ler-te no meio da tarde. Imaginar essas figuras comuns que apresentas. Desbravar essa realidade agridoce.

    bacio

    ResponderExcluir

o Febre CRÔNICA agradece sua leitura e comentário.