terça-feira, 11 de dezembro de 2012

cEIA - por Dilma Alencar.


Ele não cabia na rotina que escolhera: a ambição, a promoção, o carro do ano, as roupas compradas em lojas caras, os amigos tão inteligentes quanto previsíveis, as viagens, o turismo óbvio, os livros sujos e relidos, a angústia dos relógios na parede, o labirinto dos bares.
Ganhara um relógio azul de sua namorada, ela disse que seu pulso pedia um, ele fingiu acreditar.
Ela queria filhos, feriados em filas de supermercado, em hotéis de cidades vizinhas.
Ele teve vergonha de admitir para os amigos que, nos últimos dias, chorava sozinho.
Outro dia ele saiu sem o carro, sentia-se entediado e foi à rua andar e fumar. Andando pela calçada, inquieto pelo mal estar que fazia morada em seus ombros e passos. Perto da portaria do prédio, ele viu uma mulher sentada na calçada, com um filho recém-nascido. A cabeça da criança estava amarela, uma casca grande e oleosa cobria o cabelo fino.
O rosto da mãe era um anúncio de fome e terror, ele passou fazendo um esforço, que nunca fizera antes, para não vê-los.
Andava assim, sentindo fundo, demasiado doer alargava o peito daquele homem comum.
Os discursos mentiam. Nunca fora homem ignorante, o contrário disso, assimilava novas ideias, opinava sobre a economia da Grécia, as cotas em universidades e a democracia utópica dos partidos de esquerda.
Estava compadecido, sim, compadecido. No transito, o automóvel parado, fechava os olhos, passava as mãos pelo rosto, com força, e quando abria os olhos, sentia-se ridículo, estúpido. Rude em sua natureza, sua roupa bem passada, os ponteiros precisos lhe medindo passos.
Viu um menino fazendo malabares, o olhar do homem era largo a ponto de também ser o menino, sentia fundo o corpo raquítico, o pé de pele grossa não poupava o calor do asfalto, doía.
Suspirou, soluçou, o trânsito fluiu, ele acelerou e seguiu o fluxo dos itinerários.
Todos notaram, mãe, primo, namorada, o porteiro.
O homem tinha um ar de zumbi, fumava cada vez mais, chorava escondido.
Semana de natal: a avenida vermelha, verde e dourada ampliava a compaixão de suas lágrimas insanas, as ligações da namorada se perdiam, as buzinas, os anúncios, as putas, os bêbados, a secretária, a secreção... Tudo enojava e entristecia o homem.
Ele se interrogava, será sexo? Dinheiro? Não. Seu corpo respondia com precisão , sua namorada correspondia ao acessório mudo que ele sempre quis e mereceu, era prático, dizia, era seco, diziam.
Não transava, não dormia por mais de duas horas sem um pranto que cansasse seu corpo para um novo sono pesado e curto, quase um desmaio.
A família falava de natal, era dezembro.
A ceia era farta e previsível e todos lhe sorriam com uma bajulação irritante, ele se sentiu retardado e sua cara grave era de uma palidez esverdeada.
Conversou gentilmente com todos, falou do excesso de trabalho naquele ano, disse de planos para janeiro e sorriu.
Algumas palavras mentirosas foram repetidas e cortaram o peru natalino, garfos e facas grã-finos abriam a carne macia da ave e as bocas e estômagos enchiam-se de satisfação da tarefa feita e sentiam-se melhores e ternos.
Alheio a tudo isso, o homem lutava contra o choro compulsivo e torrente que lhe transfigurava a face e lhe fazia doce.
Como um menino, ele foi levado pelos enfermeiros de um uma clínica psiquiátrica.
A família lamentava a necessária internação, as luzes natalinas continuaram piscando, absurdas, sua namorada, tão bonita quanto uma joia cara, chorou elegantemente e não o acompanhou.
Dizem que lá na clínica, ele desenha arco-íris e chora muito em noites de chuva e ri como um monge quando tem luar.
A família paga pelos cuidados e lamenta pelo homem, vítima de um estado depressivo, assim dão nome à linguagem que não entendem.

2 comentários:

  1. Já li e reli várias vezes... Imprimi e guardei no bolso da calça. Choveu pelo caminho, as letras borraram a história. A chuva não borrou o que sinto todas as vezes que leio...
    Já te disse todo o restante pelo celular.
    Bjs admirados,
    S

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