quinta-feira, 19 de setembro de 2013

mACIEL - por Simone Huck


Marc Chagall
Maciel não vendia maçãs. Era construtor literário há quarenta e três anos. Engenheiro de histórias e medos alheios. Vomitava arroz e feijão. Engolia a vida dos outros.

Puxou a cadeira com os calos da mão e sentou-se, naquela manhã, para escrever seu último texto. Maciel era escritor. Estava tão cansado de produzir palavras que chorou em cima da pilha de folhas. Do seu olho direito pingou uma caneta e do esquerdo, outra folha de papel. Tudo que excretava fazia parte do universo literário. Arrotava abajur, transpirava poeira de livros empilhados, escarrava rascunhos e chorava caneta e papel. Do começo ao fim era escritor e já não aguentava mais viver de palavras contadas. Consoantes entraram em colisão com vogais. Seus dias eram uma tônica contada, secando sua própria vida. Poesia clandestina. Os homens eram seu caderno de caligrafia. Maciel chorou um dicionário de sinônimos.

No começo até achou graça e obteve vantagens. Na escola, suas redações sempre foram as melhores. Nos concursos literários do colégio sempre era vencedor. Era o homem mais romântico do bairro, da cidade, do estado. Escrevia longas cartas para Ana, Cristina, Beatriz, Solange, Ágata. Perdeu as contas de quantas mulheres conquistou escrevendo cartas. A maioria das linhas escritas eram completamente mentirosas. Escrevia dizendo que era amor à primeira vista. Elas, carentes, convenciam-se a cada palavra bonita que Maciel escrevia e davam-lhe o que queria. Ele, conseguindo, as cartas cessavam. Só queria sexo. Queria aliviar a mente que não parava de imaginar. Ejacular alguma coisa que não fosse história. Gozar ele. Pagava sexo com palavra bonita. Pagava amor com poesia cheia de rima. Pagava afeto com crônica. Pagava vida de verdade com conto de mentira. Era uma palavra alheia. Sempre alheia.

Maciel não era mau. Também não era o melhor dos homens. Tudo o que queria era sobreviver com a maldição que estava lhe cansando. Escrever tinha se tornado um inferno. Ele queimava.

Mais tarde o dom virou vício. Necessidade. Urgência. Fardo. Não conseguia mais olhar para nada sem escrever. Aproximava-se das pessoas para sugar suas almas. Quanto mais tristeza e tragédia elas carregavam, mais ele sorria - daria um bom texto, pensava. Contaria uma bela história. Salivava com detalhes sórdidos. Ficava excitado com desgraças e tragédias. Era escombro.

Fez mestrado em psicanálise para construir melhor a trama psicológica de seus personagens. Passou a gostar mais de morte do que de vida. Mais do fim do amor do que do começo. Adorava a ira, a inveja, o suicídio, os assassinatos, cemitérios, reuniões dos alcoólatras anônimos, esquinas com prostitutas sujas, boca de fumo e prisões. Torcia para as separações, adultérios, homicídios, obsessões. Precisava escrever. Precisava ser intenso. Precisava ser inédito. Esquecia de almoçar, de dormir, de viver sua vida. Emagreceu vinte quilos nos últimos dois anos. Escreveu onze livros em sete mil trezentas e doze folhas A4, tamanho 12, fonte Times New Roman. Todos que cruzaram seu caminho viraram história.

Numa noite repleta de personagens gordos, Maciel sentiu-se, pela primeira vez, hediondamente frustrado. Tossiu uma tosse tuberculosa e uma intenção cadavérica. Olhou para seu corpo e não encontrou vida. Suas mãos não escreveram histórias dele. Nada mais nele, era dele. Não havia nada dele que pudesse ser contado. Não era autoral. Nunca foi autobiográfico. Não teve heterônimos. Nada confundia-se com ele. Dos outros, mentiu quase sempre. Exagerou. Foi hiato. Farsa. Intensidade clandestina. 

Deitou e dormiu sozinho. Seus personagens não foram companhia.

Puxou a cadeira com os calos da mão e sentou-se, naquela manhã, para escrever seu último texto. Contou, sem escrever uma única palavra, a melhor história de sua vida. Deixou a última folha dentro de um envelope, ao lado da caneta que pingou de seus olhos. Escreveu em linhas invisíveis sobre ele mesmo. Sem mentiras. Sem construções. Sem excessos. Pela primeira vez, esvaziou-se até seu corpo dissolver todos os músculos.

Jogou na lata do lixo todas as canetas do mundo. Queimou todas as folhas e livros escritos. Juntou seus ossos. Colocou-os entre os braços e saiu sem levar a chave. Estava, finalmente, liberto dele mesmo. Era inédito.

2 comentários:

  1. Maciel não vendia maçãs, porque ele as mordia. Expulso do paraíso, foi viver no inferno das letras. Um pobre diabo.
    Parabéns pelo texto-maçã, Huck.
    Tuas coisas estão cada vez mais orgânicas.

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  2. Texto tão bem tecido, suas construções sempre muito SUAS. Bonito,Si. Um xero.

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