Poderíamos precipitar os passos, eu sei. Os ônibus
demoram mais aos domingos e minha espera foi quase um dia de pensar naquele
homem grave. Eu inventei que ele gostava do mesmo chocolate que eu, mas eu sei
que não gosta, vi uma barra de diamante negro saindo de sua mochila, eu prefiro
chocolate amargo com avelã. As gotinhas de chuva caindo me acalmaram os sonhos,
eu sorri sozinha na calada da noite e imaginei que ele estaria àquela hora,
tirando os sapatos e se jogando no sofá da sala. Eu olhei seu rosto de homem triste, barba
negra cobrindo o rosto ainda jovem, boca pequena e um olhar inquieto de quem
anda com pernas de chumbo precipitando nos currais dos terminais urbanos, era com
angústia que ele penteava o cabelo e guardava seus papéis e suas
cismas de homem. Eu podia espreitar a sua manhã ainda escura diante do
espelhinho do banheiro, não sorriu ao espelho com a boca cheia de espuma
branca, secou e perfumou o corpo como quem opera um programa. Ele sentiu falta
de perfumes, e engoliu com café preto sua última dor de amor, eu podia sentir
naquele homem uma cumplicidade efêmera que os seus olhos insinuaram para os
meus. Não era a falta de sexo que sua energia gritava, ele queria ter alguém
para reclamar daquele creme de barbear e dizer que juntou uma grana para
construir uma casa no interior. Eu desviei o olhar porque eu não sabia como
olhar, eu gosto de olhar,no entanto ser olhada é uma invasão à frágil calma dos meus
domingos rotineiros. Eu olhei o relógio da plataforma que alterava mais uma vez
o horário de chegada do ônibus, meu cachecol verde aquecia minhas mãos e a fila
crescia como minha espera. Tomamos nossos itinerários distintos, eu fiquei
olhando através da janela e enquanto pude timidamente olhar o vi bocejar uma
preguiça cansada de quem não descansa faz mais de oito dias, ele desceu no
ponto do Hospital das Clínicas e eu segui com suas impressões tristes em meus
olhos, naquele domingo, especialmente melancólicos.
Ah, o poder de viver, de imaginar, de ver e tecer ao visto uma vida inteira, de preferência uma vida na qual faríamos falta...
ResponderExcluirLindo, Adilma. Lindo.
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