segunda-feira, 20 de agosto de 2012

AMOR iMORREDOURO - por Vinícius Linné


De menina ainda, descobriram que eu tinha o coração dilatado. Aos meus pais isso abismou gravemente. Ficaram aflitos. Se eu podia morrer, perguntaram ao doutor. Mas eu não sei o que ele respondeu.

A mim preocupou a notícia também, mas por outro motivo. É que eu já adivinhava as coisas de se botar dentro do coração. Ter o coração dilatado significava, portanto, mais espaço vazio para preencher. Quanto maior o amor, maior também a dor e a perdição. Ainda menina eu era dada a estes sofrimentozinhos, essas melancoliazinhas e essa ânsia de me ocupar inteira por dentro. Sabe o que é? É que eu tinha área improdutiva no peito, lotes e lotes, e não havia quem quisesse ocupá-la.

Quando ele chegou, foi de ódio que eu me preenchi primeiro. Petulante, debochado, estranho, misterioso e lindo. O ódio deve ter durado a primeira semana de aula. Na segunda eu já havia completado o coração até os átrios de amor. E ele, eu tinha a impressão, se dilatara ainda mais para comportar os meus arroubos.

Até o final do ano ele me torturou feito um sádico. Eu era como uma gatinha a quem ele mostrava uma fita vermelha. Eu queria muito a fita, brincar com ela, me enosar inteira. Cada vez, porém, que eu chegava perto, ele a içava. Era assim mesmo. Insinuava uma coisa aqui, outra ali... 

Num dia dava a entender que gostava demais de mim. No outro, quando eu dizia que lhe correspondia, ele desviava o assunto. Me chegava a dizer assim: “Bobinha - me chamava de bobinha, fazendo-me carinho na bochecha - sabes que gosto de ti como de uma irmã.”

Assim foi e assim meu coração ganhou ares de imensidão. De noite, na cama, eu o sentia pulsando enorme entre os seios, feito uma bolha de sabão a quem tinham soprado demais. Era lindo de grande, mas estouraria tão, tão facilmente...

No final do ano a professora e os outros, que tinham corações de tamanhos normais, decidiram que faríamos aquela brincadeira de amigo oculto. Nos formávamos já e assim ficaríamos com uma lembrança dos outros.

Fez-se a caixinha, os nomes e eu, pulsando inteira, decidi que pegaria o nome dele. Fechei os olhos, coloquei a mão na caixinha e... Ana Luísa, eu acho. Não lembro direito o nome. Peguei o de uma colega cujos olhos eram aquários vazios.

Quando a caixinha chegou até ele, suspendi meus movimentos todos. Acho que até o coração caiu em um cadafalso em que não poderia sequer tremer, quanto mais pulsar. Ele puxou o papel. Abriu. Leu segurando-o na palma da mão. E então seu olhar encontrou o meu. E ele me iluminou inteira. Sorriu de canto, dando-me cada mínimo sinal de que havia acabado de ler meu nome.

Seria assim, então? Seria ali, em frente à turma, entre papéis amassados que daríamos o primeiro abraço de verdade? Um abraço destroncado, meio torto e canhestro, mas que duraria uns segundos a mais do que deveria. Seria assim?

Durante a semana ele ia me dizendo coisas:

"Quem eu peguei é uma menina. E a menina que mais gosto em toda escola. O presente dela comprei lá naquela loja de artigos exotéricos, é a cara dela. Tenho certeza de que ela vai gostar. E, quer saber, acho que ela também gosta de mim. O que você acha?"

Eu não achava nada. Perdia o prumo. Eu era a mística da sala. A até estranha por isso. Era para mim o presente. Era de mim que ele gostava.

E ele não se detinha nisso:

"Não vejo a hora de entregar o presente. Como eu queria que ela tivesse me pego também. Aí seriam dois os abraços. Sabe de uma coisa, no cartão do presente eu vou escrever tudo que sinto por ela. Tudo que nunca tive coragem de dizer. Me diga, bobinha, você gostaria de ler um cartão assim?"

Ao meu sim, ele respondeu de pronto que então ele iria escrever sim. Que ela merecia.

Quando chegou o dia da revelação, eu estava de roupa nova. Perfume roubado da irmã mais velha, coração do tamanho do pacote que tinha entre as mãos, o presente da Ana Luísa.

Os nomes foram passando, passando... E nada de chegar o dele. Até que, por fim, a própria professora entregou o presente a ele. Era chegada a vez dele. Quando ele começou a descrição, todos já disseram como enfadados: é ela! é ela!

Eu já sorria embevecida. Me encaixava em cada ponto por ele costurado, em cada linha por ele traçada. Era eu! Era eu!

Não, ele fez lento com a cabeça, sempre mantendo os olhos em mim. Sempre sorrindo para mim. Não...

Eu tomava aquele aceno da cabeça por puro charme. Os outros também. Entre o "é sim! é sim! é sim!" que gritavam, ele disse seco: "Minha amiga secreta é a Juliana."

Ele estendeu o presente para ela, a gorda da sala, sem nem sorrir, sem nem agradecer, sem nem abraçar, sem sequer falar alguma coisa, e foi sentar de novo em seu lugar.

Quando ele me olhou, satisfeito, meus olhos brilhavam úmidos. Ele sorriu outra vez. E meu coração foi estreitando, estreitando, estreitando, até chegar à metade do tamanho que um coração deveria ter. Eu não morreria mais. Precisava, de repente, avisar ao médico. Não morreria nunca mais.

10 comentários:

  1. Obrigado, meu caro, por também achar beleza no que é triste.

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  2. Ah Vinicius,pára de contar minha vida por aí rsrsrs
    Há tanta beleza na tristeza que chego a pensar que mesmo uma existência triste vale a pena.
    Furtarei rs
    Beijo.

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    1. Lilian, Lilian. Fazer o quê se contando as coisas eu adivinho?

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  3. Linné, tua história é tão bonita que me deu vontade de entrar no coração da menina.

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    1. Silmara, não pode! Não pode senão ela volta a poder morrer.

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  4. Lindo. Hoje seu texto fez tanto sentido dentro do dia. Dá até medo.
    Lindo texto.

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    1. Talvez faça sentido porque pode dentro de mim também já passou.
      Obrigado, Dilma.

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  5. Tive o grande prazer de ver essa história antes de todo mundo e a leitura foi ávida... uma ansiedade de chegar até o final.
    Seus textos possuem essa força, Vini... de nos levar a descobrir uma saída, um meio, uma possibilidade. Parabéns!!! Lindo, lindo demais !!!!

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    1. Valeu, Si Huck.
      Obrigado pela primeira leitura. Que bom que consegui conduzir até o fim. Que bom que você procura uma saída.

      Obrigado mesmo.

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