quinta-feira, 20 de setembro de 2012

a faca que ETERNIZA - por Simone Huck

Abriu a gaveta e pegou sua melhor faca. Desenvolvera por objetos pontiagudos e cortantes uma extrema fobia. Era convicta que em outra vida havia morrido assim, esfaqueada, e que nessa vida seu destino não seria outro. Naquele momento deveria ser forte, teria que conseguir dominar entre seus dedos a lâmina que lhe sorria debochada, dentro da gaveta. Pegou e colocou no fundo da bolsa junto a um caderno que há meses escrevia para ele. No caderno ela contava da sua saudade, da sua vontade e de tudo que pertenciam somente a eles, e pertencendo a eles, parecia não pertencer a mais nada. Tudo fora deles não habitava palavra, gestos ou escrita.

Pegou a faca, a bolsa e saiu. Tinha pressa. Tinha água em seus olhos. Tremia. Entrou no carro e errou algumas ruas dentro da sua certa incerteza. Ouviu a música que ouviram na última primavera, antes da vida ser tomada apenas por tempestades. Sua convicção fez com que achasse o caminho da casa dele. Tocou a campainha. Ele atendeu por interfone. Ficou admirado por ser ela e mesmo assim, abriu. Ela entrou. Ao vê-lo, tantos meses depois, não sabia se chorava, se gritava. Estava trêmula, pulmões vazios, tinha dificuldade pra pronunciar o menor dos monossílabos. Ele estava mais velho. O tempo não poupou as velhas cartas de amor que ansiosamente trocaram. O passado foi inundado e ainda afogava.

Ficaram um diante do outro por infinitos minutos. A vida era cinza. Os quadros das paredes sorriam sorrisos frios e falsos. Não se abraçaram, não se tocaram, nada aconteceu. O universo pareceu congelar. Os olhos, olhavam-se. As lágrimas de ambos escorriam pelo carpete e subitamente aproximaram-se com pressa, e com raiva, e com asilo, e com saudade,  e beijavam-se, dividindo a mesma poça de lágrimas por onde peixinhos acasalavam.

Ela abriu a bolsa. Pegou a faca e num movimento muito rápido, enfiou no coração dele. Ele segurou a mão dela e não fez força. Abaixou os olhos. Ela empurrou mais um pouco. Seus corpos tremiam, unidos ao hediondo que lhes pertencia. Abraçaram-se tão forte que ambos lembraram o calor do primeiro abraço, o primeiro encontro, o primeiro ato fugidio. A vida era tão bonita nesse momento. Ele disse, meio atravessado, a palavra “obrigado” enquanto ela, ao ser abraçada por ele que também trouxera uma faca irmã numa intenção gêmea, sentiu seu pulmão ser perfurado. Ela respondeu “eu que agradeço”.

Lentamente tombaram. Sangue e saliva uniram-se transformando tudo no que mais queriam: uma poça líquida de sal, eternizada no canto da sala. Nesse momento os quadros descansaram em paz, coloridos.

5 comentários:

  1. O corte salva. Sempre salva.
    "Faca irmã numa intenção gêmea". Belíssima construção, Huck.

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    1. Só a faca salva. Só a vida escorrida, salva.
      Só depois que esse texto foi publicado que me dei conta dele, dos dias, das coisas...
      Obrigada, Franco.

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  2. Adoro o sangue dos seus textos, as cores entram nele numa dança tão bonita, num tango.Emocionam, sempre.

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    1. O sangue escorre e limpa a alma, Dilma. Talvez daí venha a recorrência. Mas está chegando o dia das flores como tema.
      Obrigada pela fiel leitura e carinho.
      Bjs

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  3. Émile Zola lhe daria os parabéns por isso, minha cara. E seria mais do que merecido.

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