Ilustração de Ricardo Bezerra
Não vamos confundir preposição com proposição. Um prefixo pode mudar uma sentença; uma sentença pode mudar uma vida. Muita coisa cabe dentro de uma vogal - solitária letra. Imagina o que não cabe dentro de um prefixo? Mas não vamos perder a proposição desta crônica. Convido-os a pensar nas preposições. Gramaticalmente, há grande diferença entre o significado das duas palavras. Em retórica, podemos ousar colocar as duas dentro de uma mesma frase ou pensamento. O autor pode tudo. A Sra. Dinorah, também.
Segundo explicações gramaticais, preposição é a palavra que liga dois ou mais termos de uma oração. A relação entre os elementos ligados é subordinativa. Se não houver ligação, não há entendimento. Mais ou menos como a ordem do chefe e o chefiado. Nunca tive chefe. Não saberia ser uma preposição. Já o significado da palavra proposição, segundo dicionários, é a ação de pôr diante dos olhos, propor, apresentar, expor um assunto, provar, estabelecer. Tenho dúvidas se conseguiria ser uma proposição.
Na escola eu tinha um caderno onde anotava, repetidas vezes, todas as palavras que ortograficamente eu escrevia errado pelas diversas redações semanais. Se trocasse X por CH, por exemplo, lá ia a palavra ser escrita trinta vezes no maldito caderno até o burro aprender. Chateação, chateação, chateação, chateação, chateação, chateação... chateação.
A Sra. Dinorah, minha inesquecível professora de português, era dessas megeras que bem cumpria seu papel e suas proposições. Seu rosto, também gravado e cravado em minha memória, está presente nos meus olhos feito assombração de filmes de terror. O caderno que ela inventou era a sentença que carregávamos o dia todo. Quanto mais palavras ortograficamente erradas em nossas redações, maior o calo nos dedos pela repetição da palavra certa. "É preciso escrever trinta vezes a grafia certa de uma palavra! Assim vocês jamais esquecerão!". Xingar, xingar, xingar, xingar, xingar, xingar, xingar... xingar. Trinta vezes! Me controlei para que essa palavra ficasse apenas no caderno e nunca fosse um ato.
Jamais conseguirei esquecer a Sra. Dinorah. Ela é a correção de uma grafia errada martelando minha memória? Defuntos também são eternas proposições. Calma, leitor, já chegarei nas preposições. Prossigamos:
Apesar dos seus rituais nazistas, devo admitir que ela foi a grande responsável pelo meu amor e ódio por algumas palavras - o bem e o mal andam de mãos dadas pelos parques do mundo. No calo de nossos adolescentes dedos, sua ênfase na repetição queria fazer de nós, no mínimo, pessoas capazes de escrever minimamente bem. Devo admitir que sua cruel proposição foi e é até hoje eficaz comigo. Quando olho para a minha mesa de trabalho, percebo que há inúmeras dinorás escorrendo dos meus textos, pingando da minha mesa, molhando chão, deixando rastro. Sua voz sobe pela terra seca, grita, acena e pontua. Sua morte faz florescer as palavras que não esqueço. Ela é uma grafia certa na minha língua.
O caderno das palavras repetidas, que chamávamos de caderno do diabo, não era preto. Era encapado com aqueles plásticos quadriculados de vermelho que se parecem com toalhas italianas. O meu era encapado com o quadriculado azul. Nunca gostei de regras. Só as ortográficas da Sra. Dinorah. Sempre fui uma proposição contrariada. Neste caderno anotávamos também algumas regras gramaticais que tínhamos, segundo a nazista, que decorar. Me lembro das preposições. Passei dias, meses, séculos, gerações tentando decorar as dezoito preposições: a, ante, até, após, de, desde, com, contra, em, entre, para, per, perante, por, sem, sobre, trás... Nunca consegui gravar as cinco últimas. Hoje compreendo que tenho problemas com "per, perante, sem, sobre, trás". Sempre fui uma preposição incompleta. Não consigo estabelecer certas relações de subordinação. Sou uma preposição acidental, um "exceto". Muitas vezes sou um "senão". Às vezes não consigo ligar dois termos de uma oração. A expressão fica perdida num canto da minha intenção. Falo sozinha comigo mesma, entendo minhas frases insubordinadas. Sou um perante. Talvez um trás. Um sobre sem per.
Muitos anos se passaram. Sempre que escrevo um texto ou me debruço em pesquisas, me lembro da megera e do caderno do diabo. Já falei que ele era azul. Não sei se contei que ela já faleceu. Nem sei se atualmente ela ainda dá aulas. Não sei se no céu os anjos precisam de cadernos do diabo. Talvez ela tenha ido para o inferno. Dizem que lá eles não usam cadernos. Ela deve sofrer com esse detalhe.
Criei uma pasta no meu iPad para as palavras que ortograficamente escrevo errado. Digito cinquenta vezes a mesma palavra. Sou muito mais cruel que a Sra. Dinorah. Não há exceção entre as minhas preposições.
Aprendi a escrever “exceção” depois de ganhar dois calos nos dedos. Nunca mais esqueci. Como não me esqueço dela. Sempre entrava na sala com sua farda de general: avental rosa com um bolsinho na frente repleto de giz colorido. Para cada erro específico, uma cor. Erros são coloridos. A Sra. Dinorah era branca. Não sou nem colorida, nem branca. Sou a lousa. Talvez, ainda seja o caderno do diabo tentando aprender a grafia certa da vida.
Um dia encontrarei a Sra. Dinorah. Tomaremos um café com açúcar de silêncio eterno. Não precisaremos mais de nenhuma palavra.