"Para Wagner", 2011 - Simone Huck
Wagner me contou que vai embora no carnaval. Sempre temos uma fantasia para rasgar ou abandonar. Nos céus, fogos revelam um novo ano. Recomeços. Folhas de alma em branco. Dizem que é janeiro. Listas e listas de desejos invadem o coletivo humano. Estamos sempre na periferia de algo. Escrevendo verdadeiros tratados para nós mesmos. Cúmplices de mentiras diárias que inventamos tão bem. Nos convencemos diante do espelho. Nossos olhos em nossos olhos. Ainda é dezembro para muitas pessoas. Inclusive para mim. Há restos que ainda piscam freneticamente como as luzes da minha árvore de natal, ligadas à velocidade máxima. Meu modo preferido. Modos particulares. Medos particulares. Frenesim. Frenética. Vida. Pensamentos acendendo e apagando. Sinapses são histerias conectadas.
Wagner
não sabe o que sinto por ele. Talvez eu seja sinistra demais. Oculta
demais. Calada demais. Mas o fato é que não daríamos certo. Nossa
sinastria amorosa nunca saiu da intenção. No fundo, tínhamos medo
até mesmo do que os astros diriam. Éramos céticos em quase tudo. Mas teríamos gostado de ler que seríamos compatíveis na
sinastria. Acreditaríamos com aquela fé cega que tanto nos
incomodava nos outros.
Resolvi
reler Cem anos de Solidão. Era o livro que Wagner deveria
comprar para ler comigo. Talvez ele, assim como eu, descobriria que
nascemos com cem anos de diferença, com dez gerações
distantes, com um atraso de milhares de horas, estrelas ou signos. Wagner é terra. Eu sou fogo. Quando buscava motivos para não me
apaixonar por Wagner li que as pessoas de terra são realistas,
pragmáticas, conservadoras e gostam de bens materiais. Talvez ele
esteja indo embora no carnaval para ficar mais rico. São
perseverantes. Já as pessoas de fogo são otimistas, passionais e
entusiasmadas. Eu sempre ficava feliz quando podíamos passar horas
falando de livros, deus, céu ou inferno. Pessoas de fogo são
imprevisíveis e impacientes. Inflamáveis, coléricas. Como poderia dar certo? Será que
queimei a terra? Dizem que de um solo queimado não nasce mais nada. “Nem suas margaridas, Wagner. Nem suas margaridas” - pensei. Infertilizei Wagner? Ou ele me apagou? Não há casamento possível entre terra e fogo.
Consegui
dormir quatro horas. Ele vai embora. Não posso ir. Também não
posso ficar. Há tempos que não habitamos nem aqui, nem lá. Ainda é
dezembro. Não me convenceram do contrário. Dois mil e doze ainda está aqui no calor das minhas mãos. Preciso dar alpiste para os passarinhos. Agora tenho uma
gaiola e dois passarinhos. A fêmea está grávida. O macho prometeu
não partir esse ano. Vai esperar nascer o primeiro filho. Estamos
sempre dividindo nossa atenção.
Preciso urgentemente tirar o pó da minha casa antes que tenha vontade de
escrever minha carta íntima sobre os móveis. Só para a poeira
acumulada eu deixaria meu testamento. Ali, em cima do móvel da sala.
Confessaria quem realmente sou e pra onde vou antes do próximo
inverno. Escreveria uma carta de amor para você, Wagner. Eu confessaria. Juro que confessaria. Mas só os
fantasmas da casa saberiam. Será que eles existem? Nosso ceticismo
não acredita em nada. Talvez só em sinastria. Ponto.
Eu acabei de descobrir o que significa sinastria. Eu não sei muita coisa. Wagner mexeu um amontoado de lembranças minhas, eu sempre me surpreendo com isso que a linguagem consegue, sobretudo a linguagem que você constrói.Alheia ao mundo particular de cada um, a linguagem comove.É tão bonito. Especialmente Wagner.
ResponderExcluirUm xero,Si.
Há aqui uma mistura de realidade dorida com um misticismo que quer justificar a dureza. Confuso? Não, faz todo o sentido para mim.
ResponderExcluirDescobri o seu texto através dos Telhados de Cera e ainda bem que segui a sugestão, pois gostei muito do que encontrei! Parabéns!
Se quiser visitar-me, terei todo o gosto em a receber nos meus espaços:
http://instantaneospretobranco.blogspot.pt/
http://diasqueolhoomundo.blogspot.pt/
Beijo