Ela está
doente. Até onde sei, não estou doente. Ela precisará fazer uma
cirurgia no fim do mês. Peguei em suas mãos e a levei ao
cirurgião. Agora sou eu quem precisa protegê-la entre meus braços
inquietos. Conversei com ele e só depois que autorizei, ela resolveu
se deixar abrir. Invertemos os papéis. Agora sou sua mãe e ela é a
minha filha. Minha filha tem sessenta anos. A mãe da minha filha tem
quase quarenta. Depois que garanti que tudo ficaria bem, que eu
estaria na sala ao lado do centro cirúrgico, ela voltou a sorrir seu
triste sorriso amarelado. O sorriso da minha mãe está precisando de
óleo singer. A camisa da minha esperança está precisando de alguns
botões. Ela será costurada: agulhas, tecidos, pele, vísceras,
epiderme e minhas palavras. Minhas palavras não podem costurá-la
com segurança. Ela é um tecido com medo. Sou uma palavra dúbia.
Uma caneta que tenta garantir seu melhor zigue zague. Estamos em alto
mar.
Duas horas
da tarde. Entro no meu carro. Antes de costurar as ruas ligo o ar
condicionado. Faz trinta e três graus em São Paulo. Já não sei
mais o que é viver fora de um ar condicionado. Sou uma palavra
quente. Não trabalhei. Tirei o dia para resolver as costuras da
minha mãe. Acabei de juntar todos os papeis pré-operatórios. Agora
ela se parece com uma tartaruga. Carrega no lugar do casco uma pasta
repleta de exames e diagnósticos. Suas costas estão pesadas de
papéis e palavras. Os médicos de hoje não sabem costurar o mesmo
pano nem usar a mesma palavra para chegarem a uma mesma conclusão.
Cada um escreve um laudo. Cada um costura um zigue-zague em eterna
contradição. Ainda bem que sei decifrar arabescos.
A vida me
deu o privilégio de ter alguns amigos médicos. Meu telefone toca,
eles me garantem que ela ficará bem. Às vezes, meus amigos e eu,
falamos a mesma linha sobre o mesmo pano. Ela ficará bem!! eles
insistem. Semana que vem vou terminar de escrever meu livro. Semana
que vem minha mãe será costurada. Entre agulhas e palavras a vida
vai abrindo suas trincheiras.
Estou em
casa. São quase dez horas da noite. Já passei minha roupa e antes
de apagar a luz leio mais alguns trechos do livro. O telefone toca.
Quem ousa me ligar nesse horário e na minha casa? Apenas cinco
pessoas possuem o número da minha residência. Todos sabem que não
gosto de ser incomodada quando estou na minha casa. Atendo equivocada
e do outro lado minha filha de sessenta anos agradece por eu ter
estado o dia todo cuidando dela. Confessou que só depois que me viu
conversando com o cirurgião, entre palavras difíceis, foi que
conseguiu costurar em paz. De palavras difíceis ela sabe que
entendo. De panos e costuras, sei que ela entende. Ligou pra dizer
que fez uma outra regata pra mim. Uma regata branca e com gola, do
jeito que ela sabe que gosto e que só ela sabe costurar. Quando o
telefone tocou eu escrevia essa crônica falando dela. Ela com as
agulhas. Eu com as palavras. Nossa vida será um eterno zigue-zague.
Estaremos costuradas no fim do emaranhado.
para mãe e filha...
ResponderExcluirhttp://www.youtube.com/watch?v=SjVvIrE17rI
10:14hs
ResponderExcluir...
ResponderExcluirLinda relação... De Mãe -Filha,
ResponderExcluirDe Palavras.
Um abraço deste que já é seu Fã.
Sr Asaci.
Uma crónica comovente, concerteza a sua filha gostará de a ler, ao fim do zigue-zague encontrará aqui as suas costuras.
ResponderExcluirUm abraço