quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

o ESPARTILHO BRANCO - por Simone Huck

"The Corset", Valerie Steele.
(Raio-X de Cathy Jung usando um espar­tilho).

(para A. M.,  entre nossos longos cafés e diálogos).

Suas manhãs eram feitas de lancheiras, cadernos escolares, lápis de cor, o jornal do dia, desenhos impressionistas com giz de cera, sucrilhos, leite semi-desnatado, a pasta do marido – o primeiro a sair de casa, preocupado restritamente com seus compromissos – e as coisas dela; última a sair, carregando os dois filhos pelas mãos com suas respectivas mochilas. As crianças começam cedo a carregar nas costas seus pequenos mundos. Bom dia, Vietnã.

Entra no carro, acomoda os filhos no banco de trás, as mochilas e lancheiras, sua agenda e no banco do passageiro acomoda sua solidão. Ajusta o cinto de segurança com uma leve vontade de ajustá-lo em seu próprio pescoço e apertar até o ar ser a última coisa a invadir seu corpo cansado de uma rotina silenciosa e cheia. Não estava triste. Não era infeliz. Liga o carro. Queria ouvir Marisa Monte cantar Give me Love no último volume mas o filho grita do banco de trás “mamãe, coloca a música do Patati Patatá?” Se ela pudesse, compraria uma metralhadora na primeira boca de fumo – correria risco de vida – só para poder entrar no primeiro circo e matar a primeira dupla de Patati Patatá que encontrasse pela frente. Seriam dois palhaços a menos dos três milhões que se disseminaram nos últimos anos. O lixo sempre tem um marketing inteligente. Trocou o CD a pedido dos filhos e foi Patati Patatá quem metralhou Marisa Monte. Ela não ganhou amor. Give me Love não existe. Deixou os filhos na escola e sua solidão, sentada no banco do passageiro, fumava um debochado cigarro e vestia Calvin Klein. Tinha um sorriso elegante tanto quanto sua postura e roupa. Repousou suas mãos em cima das mãos dela quando tentava trocar a marcha do carro e disse “agora vamos tomar um café de verdade?” Concordou sorrindo. Trocou o CD do carro com tanta raiva que quase esfarelou Patati Patatá entre seus dedos. Give me Love começou a tocar. Ainda era possível. Chorou. Cantou. Batia no volante com dedos ávidos, acompanhando o ritmo da música. Finalmente era seu próprio metrônomo. O ritmo, a vida, o ar que entrava pelos seus pulmões e atravessava sua alma estava em Adágio. Naquela hora da manhã, tudo era somente seu e seguia o seu ritmo. Lembrou que antes de sair de casa havia vestido por baixo da roupa cotidiana um espartilho branco que o abraço frio e rápido do marido não notou. A rotina é uma tesoura diária que recorta detalhes.

Faltavam duas horas para o trabalho. Precisava mais uma vez daquilo. Não, não era vício. Nem fuga. Não era louca. Não estava possuída por um espírito. Tinha o exato controle de sua mente, coração e vida. E justamente por ter o controle de todas as suas razões e emoções, sentia-se plenamente lúcida para mais uma vez estar ali. Estacionou o carro numa garagem larga com vários outros carros. A casa era bonita por fora, clara, com algumas flores debochadas no canteiro de entrada. Tocou a campainha e o interfone pediu a senha. Aproximou a boca no microfone e disse alguma palavra em inglês que lembrava peixe, seguida por três números repetidos. Nosso maior segredo pode habitar uma simples senha. A porta abriu. O que estava lá dentro em nada se parecia com o que estava lá fora. Era escuro, muito escuro. Corredores, balcões, quartos. Não havia flores. A casa parecia um labirinto sem fim. Anônimos da manhã misturavam-se com os anônimos da madrugada. Entrou no terceiro quarto escuro depois do segundo corredor. Fechou a porta e os olhos. Em menos de dois minutos sentiu uma boca a percorrer seu pescoço e corpo. No escuro, uma boca é uma boca, nada mais. Quem a beijava sentiu seu espartilho, suspirou alguma coisa inteligível e gostou. Os desconhecidos alimentam-se de detalhes que os conhecidos não enxergam. Em poucos segundos estava nua, abraçada, beijada e domada. No escuro anônimo, Maria Bethânia cantava “Dentro da noite feroz, no breu das noites brancas de hotel, no clarão, no vão, no não... na multidão. Tua. Tua e só tua”. Misturado a um cheiro velho de almíscar, ela sentia-se completamente de alguém com vontade, suor, tremores e silêncios. Escamas córneas escorriam pelas paredes. Dentes, mãos, pelos e pele. Tudo era minuciosamente percebido e sentido. Ficou por duas horas naquela casa. A porta abriu e fechou algumas vezes. Outras pessoas entram e saíram. Todos notaram seu espartilho.

Entrou no carro. Antes de sair passou um batom, arrumou o cabelo e foi para o trabalho. Atendeu telefonemas. Resolveu situações adversas. Autorizou a contratação de dois novos funcionários e saiu para almoçar no horário de sempre. Conversou com todos normalmente. Resolveu tudo com a eficiência diária e as dezoito horas em ponto estava no portão da escola para pegar seus filhos. Em cinco minutos as crianças saíram com um sorriso largo pendurado no pequeno rosto, abriram os braços e correram em sua direção. Ela os abraçou como se abraça alguém que vai para a guerra sem a certeza do regresso. Eles a abraçaram como se abraça uma mãe, na rotina dos dias. Foram todos para casa. Não tiveram tempo de pedir Patati Patata porque ela já havia deixado pronto para tocar. Voltaram cantarolando os palhaços. Ela achou a vida uma ironia. Um picadeiro com a melhor fantasia. Um palhaço no auge de sua melhor palhaçada. Ela nunca conseguiu sorrir com um palhaço.

Chegaram em casa. Deu banho nas crianças e quis terminar de preparar o jantar. Fazia questão de finalizar o que a empregada deixava pronto. Queria ser a última a dar uma pitada de gosto em seu pequeno desgosto particular. Enquanto os filhos brincavam na sala, o marido e sua pasta entraram. Ele abraçou os filhos como se abraça um gato. Sorriu. Foi até a cozinha e beijou-a como se beija a foto da própria mãe numa lápide fria. Ele era muito educado. Elogiou o cheiro da comida e quase não notou que ela terminava de preparar o arroz com carne que ele mais gostava. Foi para o banheiro em silêncio. Tomou banho e não ousou cantar uma única vogal. Quando terminou, todos o esperavam na mesa. Antes de começar a comer, ele quis colocar uma música para tocar baixinho na sala ao lado. Ela concordou. Ele foi até o aparelho de som, colocou o CD e deu play. Maria Bethânia começou a cantar: “Dentro da noite feroz, no breu das noites brancas de hotel, no clarão, no vão, no não... na multidão. Tua. Tua e só tua”. Ela parou de respirar. Ele voltou para a mesa e começou a comer. Ela perdeu a vontade de comida e começou a mastigar a música que deitava em seu prato. A rotina tinha fome e apreciou a carne com arroz que ela fez. A música tinha fome e notou o espartilho dela. A rotina e a música lamberam os beiços.

2 comentários:

  1. Porque não ser infeliz não é o mesmo que ser feliz.
    Um conto brilhante, da rotina, do conformismo e da solidão acompanhada.

    Abraço, Simone.

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  2. Obrigada pela leitura e comentário, Isa. Abraço, Simone

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