terça-feira, 8 de janeiro de 2013

uM HOMEM EM SILÊNCIO - por Dilma Alencar

Sorriu e entrou no táxi. Seu semblante não era de alegria em explosão como paixão de adolescente, limpa e ainda intacta.
Arrumara a casa, o curso, a cidade.  Os dias de estudo e trabalho esperavam o homem. Os amigos crentes de seu sucesso fizeram almoço, compraram agendas e camisas sociais, meias em tons pastéis e até cartão. Chegou cedo ao aeroporto, conversou com intimidade com a moça do caixa e falou da insegurança de ser homem sério. Ela ouviu, não entendeu e lhe perguntou se tinha cartão de débito.
Enquanto tomava seu chá preto seu pensamento voou se desfazendo como nuvem, montando desenhos indecifráveis.
Era homem vivido e seu olhar mel, barba enegrecida, traços fortes, mãos grandes, corpo e passos firmes, tudo exibia a plenitude do sucesso, mas um pouco de atenção maior ao olhar desnudava um amargor no peito, um boi perdido no mato, sem vaqueiro que o alcance, sem cabresto, cio sem leito, há muito o sereno cansara a sua vista, e os estudos o livraram das reuniões familiares.
Ser arisco, ser silencioso como um cacto lhe cortara vínculos, não que não regasse flores e mais de uma vez não lhes entregasse o seu coração bruto.
O pão dividido pela manhã não era comungado como linguagem e lhe cobraram discursos sem tronco, sem semente nenhuma, pois embora urbano ele interpretava o mundo como colheita, e contemplava os acontecimentos com o espanto de quem não escreve nem lê, e ouve um repente que geme, uma reza.
Dormir, comer, fazer amor, tomar banho de chuva, tudo era sentido como uma festa, ou um enterro, a gravidade do silêncio era certa. Sempre fora assim: fundura muda.
Os novos amigos juravam que ele guardava saudades de amor antigo, desses amores que ficam de mãos dadas a vida inteira, mesmo estando os corpos em outro tempo e espaço.
Porque tinha muito amor, escolhera viver só.
Certa vez, aceitou um pedido de namoro.  Uma semana depois, sua gaveta de cartas amarelas sem remetente nem datas, onde súplicas de um amor agonizante derretiam sua sintaxe, fora vasculhada pelas mãos nervosas de uma mulher apaixonada.
Ele lamentou o equívoco do enlace impossível e disse para a moça que respeitava mais sua solidão que a sua liberdade.
Ela disse que não entendia, ele lhe explicou que para ele a solidão era mais cara. “Liberdade não pressupõe espaço e tempo, solidão são meus pratos e livros dispostos à minha vontade, meu corpo e café ao meu sabor, meu olhar livre para deus e a para o diabo, liberdade é um nome para ganhar correntes coloridas. Liberdade não existe ao passo que solidão é a dignidade de não amar a abstração, a ideia, e sim morrer no corpo a ânsia de eternizar o desespero, assim poder morrer num repente de tanto amor transbordado no olhar” ele dissera.
Ela não entendeu, assim como também ele não soube até hoje o que quis dizer quando disse.
Ele não era triste, seus gestos ternos encantavam as mulheres. Ele amava, sim.
Um amor largo e sem morada. Saia pouco, e quando o fazia, voltava sempre acompanhado. Sexo e gentilezas previsíveis, pois assim elas esperavam. Nunca quis o telefone de nenhuma, embora aceitasse sempre anotar o número delas e fazer perguntas previsíveis.
Agora ali, no saguão vazio do aeroporto àquela hora da manhã.  Sentia uma dor nova.
Um estranhamento de apertar-se em seu próprio corpo, o jeans azul, a camisa preta,o cabelo arrumado ,o rosto  talhado com traços viris, mas os olhos, esses adquiriam uma liquidez nova, amoleciam enquanto viam a pista: os aviões pousando, gente partindo com lágrimas, com panos cheios de memórias e gostos, com rosas no peito e desespero na alma.
Ele experimentou olhar além da possibilidade de sua solidão tão cara.
Viu - com espanto de quem leva um tiro, incrédulo, atônito, mudo e pálido - homens arrastando correntes no tornozelo, mulheres enredadas em fios de tarrafa, casais jovens com punhais no peito. Um homem gordo arrastava um jovem com corda de aço. Uma velha limpava a ferrugem das correntes dos filhos homens.
Dentro de todos, ele via um círculo rubro. Apertou os olhos com força.  E viu, sem espetáculo nenhum. Pediu leite, bebeu. Foi ao banheiro com o cuidado de não mirar o espelho.
O relógio, como era de costume, lhe apontou os passos. Embarcou, com medo de ver de novo. Sentiu um frio, metal frio nos pulsos.
Ele não sabia das correntes que lhe aguardavam, mas já sentia o estranhamento da temperatura.


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