João acordou e cuidou das flores. Preparou café. Não gostava
de café, fez só para trazer de volta a graça de Madalena, como se precisasse. Depois
do banho, enquanto escovava os dentes olhava o espelho, seus olhos fundos, vermelhos,
se envergonhou pelo choro, fora criado para ser homem, homem não chora,dissera
seu pai. Embora sozinho, ele sentiu o olhar de reprovação do pai,esfregou os
olhos e chorou,voltou para o banho, o barulho da água caindo se misturava ao
som do seu soluço, sua humilhação foi lavada ali, com água quente, xampu,
sabonete.
Evitou o espelho, abaixou a cabeça, pegou a toalha, cabisbaixo
e grave, entoou um samba. Um homem sozinho engasgando um samba quase fado era o
avesso das alegorias. A sala era a avenida solitária, onde as fantasias, pequenas
pistas de enredos, repousavam à espera de Madalena. Abriu a janela da cozinha. No
varal, o sol intensificava as cores azul, verde, branca, da saia que Madalena
desfilou sobre seu colchão. Seca e leve, a saia dançava límpida como aquela
primeira manhã de ausência.
Na brisa fresca a vida era uma ofensa ao seu luto de
ser homem sem Madalena.
Ele, menino, cheirava a renda perfumada da noite que
Madalena estava.
O violão convidava João à cadência em Lá Menor, entre
seus dedos de tantas linguagens ébrias, era Madalena que silenciava. A flor de
pano sobre a cama, desamparada sem os cachos dourados dela. A tristeza do pote
de açúcar junto ao de café. Existir entre aquelas paredes testemunhas de tanto
visgo de amor era uma ferida nova que fazia de João outro homem, O que podia
João diante do cenário vazio? Sina ou cisma?Não se sabe.
_Puta, puta.
Ele repetia. Os nervos do pescoço saltando quentes,
nos soluços de raiva e paixão.
Na cozinha, passos lentos entre o fogão e a geladeira.
O pano de prato sujo estranhava a ausência dos gestos
femininos, a casa secava sem perfume e sem barulho.
Ladeiras, ladainhas, enredo primeiro amor, nó cego, cipó
de corpo junto.
Meses de noites caras, de dias de cio e chuva, cerveja
e suor. O preço não excluía o encantamento, antes estimulava, e o sexo tomara a
rotina sob seu teto marrom.
Há oito meses, convidara Madalena para dançar, com a
intenção de conduzir fora conduzido, hipnose ou a embriaguês de boêmio fez com
que o decote de Madalena roubasse a cena. Vaidosa dentro de suas curvas macias,
ela sorria e suspirava leve no refrão de Noel.
Perfume, colar, anel e aos seus pés, João. Homem
maduro em plena meninice de primeiro encanto, sem dinheiro para mais nada, manter
Madalena brilhante custava um coração e metade do ordenado tímido de
marceneiro, profissão que aprendera com o pai.
Os encontros, assim como os desencontros, podem
acontecer ao acaso, sem explicação.
É a dúvida que desce goela abaixo junto com a cachaça
com limão, que João toma entre um móvel e outro, um intervalo e outro.
Ela partiu como tantas vezes partira. Sem dor, com
alegria e fome, é de Madalena ser do mundo, do seu mundo.
Foi rainha, foi senhora de João. Teve o homem.
Teve.
Como nenhum homem há de tê-la, teve.
Ela pintou o rosto, os olhos destacados, olhos insinuantes,
cínicos, delineados por lápis preto repetidas vezes, sombra dourada como sua
alma em dia de avenidas abertas. E batom rosa, escandalosamente rosa, unhas cobertas
de vermelho púrpura.
E o olhar de quem acabara de gozar. Assim saiu às
ruas, exibindo suas vontades em símbolos vermelhos e macios.
Madalena segue pura de platonismos, isenta da rotina.
Madalena fuma e ri, enquanto passa em frente à
Catedral da Sé com um novo cliente.