quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

vIA-SACRA - por Simone Huck

Géraldine Georges

Ela entra no carro com dificuldades. Ainda se recupera da última cirurgia. Parece um agricultor dos infinitos campos de arroz do Camboja, cansado e com fome de esperança, tentando equilibrar entre seus dentes alguma palavra capaz de sorrir. Seus olhos verdes me encaram. Sorrio sem graça. Ela corresponde. Não contei tudo sobre sua doença. Tenho a sensação de que ela pode descobrir minha mentira. Seu otimismo é colorido. Guardo minhas mãos trêmulas no bolso. Meus dias andam cinzas. O bicho de muitos braços está no banco de trás do meu carro, vai pra clínica conosco. Não posso olhar no retrovisor. Sou um motorista sem estrada, covarde, tentando encontrar o caminho de volta pra casa. Nossa casa não existe mais.

Na rodovia ela implica com meu GPS. Diz que a moça que dita as coordenadas não sabe dirigir. É burra e repetitiva. Ela se irrita. Eu já não sei mais o que é viver sem estar irritada. Tento amenizar os caminhos de sua Via-Crúcis colocando uma música. Ela tenta me falar de Jesus. Só consigo pensar no momento em que Ele foi condenado. Todos nós seremos martelados num pedaço de madeira. O bicho de muitos braços sorri no banco de trás. Lê pensamentos. Pelo retrovisor me mostra um saco de pregos e diz que vai pregar um por um de todos os seres humanos da face da terra. Estar vivo é a nossa maior ameaça. Nossa crucificação é fato.

Sempre imaginei carcinomas como um bicho cheio de braços que lentamente abraça nossas vidas. A ciência sempre me pareceu bonita quando não estava em minha casa. Agora ele senta no sofá. É feio. Ofereço-lhe café e não sei com qual dos braços receberá. Temos que ser amigos. Seu hálito quente toca minha nuca. Farei de tudo para protegê-la. Sou um kamikase pronto para atacar.

Nossas últimas semanas tornaram-se um amontoado de horas, segundos e laudos. Sentenças impressas e contraditórias. Médicos lunáticos e inseguros. Estamos numa torre de Babel e ninguém sabe onde está Deus. Acelero e questiono:
- Já é dezembro, mãe?
- Não filha, acabamos de sair do carnaval.
- Mas eu não fui pra avenida.
- Eu fui, na ala cirúrgica.
Acho graça. Herdei seu deboche. Ajudo-a a descer do carro. Em meia hora começará outra bateria de exames clínicos. Em segundos a vida me transformou num soldado pronto pra guerra. Ela elogia minha camisa e vê minhas medalhas. Acredita em mim. Lidero o pelotão. Iniciamos as buscas. Quando o alvo for encontrado, não restará um só dedo do bicho de muitos braços para segurar a caneta e escrever nossa Via-Sacra. Já que ainda estamos em fevereiro, matarei o inimigo ainda no tempo da quaresma.
   




2 comentários:

  1. O bicho de muitos braços não tem mãe. Nem filha. Não sabe, portanto, a força disso. Não existe nada mais poderoso que uma mulher que já esteve dentro de outra.
    Um dia de cada vez, prometa?

    ResponderExcluir
  2. Quando é necessário, encontramos força que não sabíamos sequer que tínhamos...!

    ResponderExcluir

o Febre CRÔNICA agradece sua leitura e comentário.