quinta-feira, 18 de julho de 2013

o ÚLTIMO GOLE DE MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO - por Simone Huck



Há um silêncio em seus cafés. Disfarça. Fecha os olhos no último gole, antes da xícara esvaziar. Mário de Sá-Carneiro tem medo de fundos vazios. Revelam a mesma face. O autorretrato dela, ou seria dele?, mora no fundo de suas xícaras de café. Ele finge que não vê a exposição. Pega um pedaço de guardanapo e rabisca alguma coisa que só a sua agonia entende “...e o carmim daquela boca Que ao fundo descubro, triste, Na minha ideia persiste E nunca mais se desloca”.

Dentro da despensa. No bar. Na lanchonete. Nas latas de lixo com restos de cacos e borra de café. Nas reuniões. Na casa dos amigos. No trabalho. Durante o dia. Durante a noite. Quando não é dia nem noite. Ela, ou seria ele?, está ali. Insistente. No fundo de cada xícara. Persistente. Ególatra. Desenhando traços em sua memória. 

Mário de Sá-Carneiro está cansado de fugir. Aos poucos, vai abandonando sua alma. Quer esquecer. “Eu não sou eu nem sou o outro, Sou qualquer coisa de intermédio: Pilar da ponte de tédio Que vai de mim para o Outro”.

Ela, ou seria ele?, mora debaixo do tênis sujo de barro da população universal, misturado a cocô de cachorro, grama, escarro e restos de café que um bêbado atirou no asfalto achando que era cachaça. Eles andam bêbados dela, ou seria dele?,. Mário de Sá-Carneiro e o homem alcoolizado confundem coisas quentes e frias. Estão equivocados e enjoados. Cheios. Mário de Sá-Carneiro e o homem alcoolizado. Mário de Sá-Carneiro e sua língua. Mário de Sá-Carneiro e sua traqueia. Mário de Sá-Carneiro e todas as xícaras de café do mundo.

Ela, ou seria ele?, entupiu o esôfago de Mário de Sá-Carneiro.
“Sou estrela ébria que perdeu os céus, Sereia louca que deixou o mar; Sou templo prestes a ruir sem deus, Estátua falsa ainda erguida no ar...”

Cinco frascos dentro da última xícara de café. Antes do último gole de estricnina, ela, ou seria ele?, sorri.  

2 comentários:

  1. Texto lindo,Si. Você escreve lindo, escreve dor, escreve,você escreve.

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  2. É no luso-suicídio que o café dele (ou seria dela?) fica mais amargo.

    (Bela inspiração além-mar, ainda que não.)

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