Há um silêncio em seus cafés. Disfarça. Fecha os olhos no último gole, antes da xícara esvaziar. Mário de Sá-Carneiro tem medo de fundos vazios. Revelam a mesma face. O autorretrato dela, ou seria dele?, mora no fundo de suas xícaras de café. Ele finge que não vê a exposição. Pega um pedaço de guardanapo e rabisca alguma coisa que só a sua agonia entende “...e o carmim daquela boca Que ao fundo descubro, triste, Na minha ideia persiste E nunca mais se desloca”.
Dentro da despensa. No bar. Na lanchonete. Nas latas de lixo com restos de cacos e borra de café. Nas reuniões. Na casa dos amigos. No trabalho. Durante o dia. Durante a noite. Quando não é dia nem noite. Ela, ou seria ele?, está ali. Insistente. No fundo de cada xícara. Persistente. Ególatra. Desenhando traços em sua memória.
Mário de Sá-Carneiro está cansado de fugir. Aos poucos, vai abandonando sua alma. Quer esquecer. “Eu não sou eu nem sou o outro, Sou qualquer coisa de intermédio: Pilar da ponte de tédio Que vai de mim para o Outro”.
Ela, ou seria ele?, mora debaixo do tênis sujo de barro da população universal, misturado a cocô de cachorro, grama, escarro e restos de café que um bêbado atirou no asfalto achando que era cachaça. Eles andam bêbados dela, ou seria dele?,. Mário de Sá-Carneiro e o homem alcoolizado confundem coisas quentes e frias. Estão equivocados e enjoados. Cheios. Mário de Sá-Carneiro e o homem alcoolizado. Mário de Sá-Carneiro e sua língua. Mário de Sá-Carneiro e sua traqueia. Mário de Sá-Carneiro e todas as xícaras de café do mundo.
Ela, ou seria ele?, entupiu o esôfago de Mário de Sá-Carneiro.
“Sou estrela ébria que perdeu os céus, Sereia louca que deixou o mar; Sou templo prestes a ruir sem deus, Estátua falsa ainda erguida no ar...”
Cinco frascos dentro da última xícara de café. Antes do último gole de estricnina, ela, ou seria ele?, sorri.
Texto lindo,Si. Você escreve lindo, escreve dor, escreve,você escreve.
ResponderExcluirÉ no luso-suicídio que o café dele (ou seria dela?) fica mais amargo.
ResponderExcluir(Bela inspiração além-mar, ainda que não.)