"Babel", 2010 - Simone Huck
Encáustica s/tela
23.07.2013: Nevou no sul do país tropical. Foi uma festa. O papa tirou o dia para descansar. Sem festa. Vi mais um desconhecido defunto quando ia para o trabalho. Outro caixão anônimo. Lágrimas alheias, às vezes, não molham. Vinte e três de julho de dois mil e treze. Tenho treze dúvidas e duas mil confissões. Quem poderá me ouvir? Nem Francisco. Pastor. Monge. Preta Velha. Ninguém! Anunciam que será a noite mais fria do ano. Minhas intenções cansadas continuam quentes, não possuem cor de neve, nem ouvidos que as ouçam. Tenho vontade de desligar o interruptor dos dias. A mãe também anda cansada. Hoje foi dia de nova consulta. A oncologista, atenta, discute comigo a logística da doença. O câncer tem organograma. Queria ter vinte e três anos novamente. Mais uma tomografia para controle. O meio do caminho pede novas investigações. Será que será que será? Será que a quimioterapia está algemando as mãos do invisível? Será que o papa rezou antes de deitar numa cama carioca? Amanhã é rodízio do meu carro, não vou para São Paulo, não entrarei pela lateral do velório para seguir até minha sala de trabalho. Não será dia de ver defuntos ou lágrimas desconhecidas. Talvez tenha neve. Talvez o papa tenha pesadelos. Talvez terei vontade de chorar lágrimas secas.
24.07.2013: Hoje é dia de quimioterapia. Já separei o casaco, o cachecol, as meias e recomendei que a mãe leve um cobertor para se enrolar nas quatro horas em que a droga entrará pelo portocath, o cateter instalado em seu coração. A droga entra por ali. Na veia cava de um coração com medo. Será que o coração de um papa tem medo? Francisco fez uma missa em Aparecida. Aproveitou e foi pedir ajuda para a mãe brasileira. A mãe dele, que também é sua, minha e de quem quiser - diz a lenda. Será que essa mãe tem medo como a minha? Quais medos que os defuntos que vejo diariamente pesam em seus caixões? Não nevou. Não houve festa. Agora sou eu quem cuida da mãe. Sou mãe de mãe.
25.07.2013: A vida segue por alguma bifurcação. Tenho um organograma para cumprir. Quando chegar dezembro, será Natal. Não poderão fazer bonecos de neve no sul do país tropical. O papa estará em sua casa. A quimioterapia terá acabado. A mãe será uma diástole feliz. Eu continuarei sendo uma sístole em crise. Moraremos todos no coração do papa, ou de Aparecida, ou dos defuntos que diariamente pesam dúvidas em caixões que não falam. Talvez eu tenha encontrado a coragem para sumir. Desaparecida será meu nome.
Doenças têm organogramas; curas também.
ResponderExcluirBeijos para mãe, filha e espírito santo.