segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

a MÃO DO TOQUE - Por Vinícius Linné


Depois de morta, falou e escreveu de uma maneira sem igual. Atingira, enfim, a compreensão sagrada do que já acabou. É no final que muitas obras fazem sentido. Foi do túmulo que ela compreendeu que não se compreende a vida. E então contou.

As suas frases ditas entre o sopro azul dos mortos, pontuadas pelos olhos baços, entrecortadas por pupilas dilatas, e tamboriladas pelos dedos tortos, dedos mortos, tornaram-se meu epitáfio.

Cada frase reverberou no meu corpo vivo – e o matou um pouco. Cada frase se aglutinou ao meu sangue e ali corre, sem parar. As frases da morta eu tomo como minhas. Se há bíblia em mim, é o seu livro dos mortos, cheirando a alcatrão e perfume caro.

Para cada palavra que sua boca dizia, meu peito captava mais outras no ar. Não era simples a morta. Se fosse, morreria, deitaria e se manteria calada, segurando o riso e as lágrimas até a platéia sair. Não. Era complexa. Falava e entristecia, despudoradamente.

Quando a morta falou “ou toca, ou não toca”, eu sabia do resto. Eu sabia que ela mesma não gostava de ser tocada, não se permitia ser tocada. Ainda assim, não havia nada que desejasse mais do que o toque. Nada ela queria tanto como que segurassem sua mão de morta, aquela queimada e atrofiada e apodrecida e feia. 

Alguém queria segurar a mão da morta?

Ninguém.

E se alguém tentasse, se alguém arriscasse a sanidade e a vida, se alguém estendesse sua mão viva à mão da morta, ela recolheria a própria mão tomada de horror. E pudor. A mulher que só era compreendida pelo toque não se deixaria tocar. Ela não queria compreensão. Não precisava. Queria contato. Puro. 

E por serem minhas também as frases, por haver morte correndo em mim, eu também preciso ser tocado para que me possam compreender. E eu também me esquivo. Eu também tenho horror ao contato do que é humano.

Ultimamente, no entanto, tenho me deixado tocar. Tenho me deixado ser. Tenho deixado a aproximação de quem tem a coragem de se aproximar.

E descubro, então, fascinado, que tocar é deixar-se tocar. Que ser é deixar o outro ser. Que a proximidade não fere, mas antes dá a impressão de vida. Era isso. A morta queria ser tocada e tocar para ter a impressão de que ainda estava viva. Só isso.

E então eu quero também. Quero porque isso revive o que em mim é catacumba. Quero porque o humano me aproxima de ser humano. Quero porque o oposto de tocar não é não tocar. O oposto é deixar-se morrer. Mesmo em vida. E eu, apesar de ter as frases dela, não lhe tenho o mesmo senso. Não, eu não. Eu não quero guardar minha mão pra morte.

Um comentário:

  1. Eu gostei muito do seu texto, "Despudoradamente" é uma palavra linda. Parabéns ,Linné.

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