Saía de casa pela manhã
com uma certa ânsia. Hoje sei que era fome de letras. Durante todo o caminho ela observava: homens, mulheres, crianças,
animais, flores, objetos, estrelas, lixo, resto, acúmulo. E apenas
com uma palavra conseguia traduzir o todo do que via. Ela nunca
errava. Parecia bruxa, capeta, diabo, deus, anjo, mentor, caboclo,
orixá, padre, pastor. Sei lá. Até hoje não sei dizer se isso era
dom ou maldição. Será que ela lia pensamentos? Não. Não era
questão de adivinhar. Nem de simplesmente “ouvir pensamentos
alheios”. Ela diagnosticava almas. Ouvia o pequeno ruído que cada um pensa esconder dentro de si. Via com nitidez a palavra oculta de cada homem. Era abril.
Anotava tudo em lenços de papel, restos de jornais, panfletos amassados, qualquer pedaço de celulose que estivesse ao alcance de seus dedos. Guardava tudo nos bolsos. Tinha pressa em anotar. Notei que suas mãos
eram calejadas. Havia restos de tinta e grafite pelas unhas e roupas.
Há quantos anos ela fazia isso? Quantos anos tinham suas palavras? Era psiquiatra? Como conseguia num simples olhar diagnosticar uma alma inteira? Era doce.
Nos esbarramos na
esquina grafitada. Os desenhos do muro também pararam para nos observar. Ela
estava com as mãos cheias de palavras. Me olhou, não sorriu. Pediu
para que eu abrisse minhas mãos e dentro colocou uma palavra. Não
estava em seu dia de bruxa. Também não estava em seu dia de deus, diabo ou anjo. Pediu para que eu fechasse as mãos e fosse para casa. Garantiu que depois daquele dia, eu teria a grande resposta. Era trêmulo.
Quando cheguei em casa, abri a mão, li a palavra e nunca mais fui eu. Era tarde.
Não conte a ninguém, a palavra.
ResponderExcluirNem para você.
É segredo.
Texto lindo, gostei tanto.Construção tão bonita.
ResponderExcluirUm xero,Si.