quinta-feira, 25 de abril de 2013

a MULHER QUE COMIA LETRAS - por Simone Huck

Havia nela uma sede pelas palavras. Uma fome colossal. Forrava o prato com elas e comia uma por uma. Não desprezava vírgulas. Considerava reticências. Sua fome não era pelas palavras acumuladas, catalogadas em ordem alfabética nos dicionários. Nem das palavras impressas em revistas que contam cenas cotidianas. Não estavam nos jornais que sujam as mãos. Nem nas telas de computadores que acumulam nas retinas. Uma palavra é um mundo e ela sabia disso. Não estava no coletivo. Era fragmento que seus olhos sabiam traduzir e sentir. Forrava o prato de palavras e jantava, uma por uma. Daqui dois minutos, a fome anunciava a necessidade de uma nova literatura em seu estômago. Era outono.

Saía de casa pela manhã com uma certa ânsia. Hoje sei que era fome de letras. Durante todo o caminho ela observava: homens, mulheres, crianças, animais, flores, objetos, estrelas, lixo, resto, acúmulo. E apenas com uma palavra conseguia traduzir o todo do que via. Ela nunca errava. Parecia bruxa, capeta, diabo, deus, anjo, mentor, caboclo, orixá, padre, pastor. Sei lá. Até hoje não sei dizer se isso era dom ou maldição. Será que ela lia pensamentos? Não. Não era questão de adivinhar. Nem de simplesmente “ouvir pensamentos alheios”. Ela diagnosticava almas. Ouvia o pequeno ruído que cada um pensa esconder dentro de si. Via com nitidez a palavra oculta de cada homem. Era abril.

Anotava tudo em lenços de papel, restos de jornais, panfletos amassados, qualquer pedaço de celulose que estivesse ao alcance de seus dedos. Guardava tudo nos bolsos. Tinha pressa em anotar. Notei que suas mãos eram calejadas. Havia restos de tinta e grafite pelas unhas e roupas. Há quantos anos ela fazia isso? Quantos anos tinham suas palavras? Era psiquiatra? Como conseguia num simples olhar diagnosticar uma alma inteira? Era doce.

Nos esbarramos na esquina grafitada. Os desenhos do muro também pararam para nos observar. Ela estava com as mãos cheias de palavras. Me olhou, não sorriu. Pediu para que eu abrisse minhas mãos e dentro colocou uma palavra. Não estava em seu dia de bruxa. Também não estava em seu dia de deus, diabo ou anjo. Pediu para que eu fechasse as mãos e fosse para casa. Garantiu que depois daquele dia, eu teria a grande resposta. Era trêmulo.

Quando cheguei em casa, abri a mão, li a palavra e nunca mais fui eu. Era tarde.

2 comentários:

  1. Não conte a ninguém, a palavra.
    Nem para você.
    É segredo.

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  2. Texto lindo, gostei tanto.Construção tão bonita.
    Um xero,Si.

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