quinta-feira, 11 de abril de 2013

rUA DO CÂNCER, SEM NÚMERO - por Simone Huck



Geraldine Georges
 
Senta com dificuldades na gelada cadeira de rodas. Amontoa intestino grosso, apêndice, bexiga e os ureteres com as mãos. Coloca tudo em seu colo e dá sinal com olhos que não mastigam esperança. Entendo o comando e sigo empurrando-a. Tomo cuidado para que seus drenos não enrosquem em meus pés. Não posso mais tropeçar nos restos que nos tornamos.

Somos dois corpos subindo a desordenada e esburacada ladeira da vida. Não há semáforos no hospital para cancerosos. Todas as ruas são sem saída. Me perco com facilidade num asfalto sem garantia de reparo efetivo. A vida é uma cilada. 

Ela abre a bolsinha rosa, pega um batom e enche as mãos de fé. Carrega fé a tiracolo. Acredita piamente. Eu não. A vida está me subtraindo. Não consigo mais somar espantos bons, esperanças tênues. Sou uma empurradora de cadeira de rodas opaca. Uma filha que mente enquanto trafegamos pelo infinito complexo hospitalar. O pedágio é caro. Nunca há troco. Engolem tudo com tamanha pressa. O câncer é capitalista.

Tento contar uma história feliz com voz triste – ela sorri mas não se engana. Nossa guerra diária pode tornar-se desleal. Ela percebe meu equívoco. Já estamos mutiladas. Preciso acumular alimento para mim e para ela antes do inverno chegar. Tropas inimigas aproximam-se. Farei uma brigada junto aos outros esquartejados. A noite será quente.

Nossas sombras esburacadas se fundem no sol da meia-noite que as lâmpadas frias do hospital projetam sobre nossas cabeças brancas. Não iluminam pensamentos malignos. Ainda não sei como contar pra ela que antes do inverno teremos que ocupar outro país. A vida é uma estratégia falida.

4 comentários:

  1. Ola Simone, ao procurar no Google algo sobre minha dor, deparei-me com seu texto. Forte, verdadeiro, Intenso....E que de alguma forma preencheu minha alma. Agradeço por sentir-me acalantada por tão verdadeiras palavras. Eu escrevi sobre minha dor. Peço licença pra coloca-lá aqui... Talvez com a esperança que ela diminua ou que desapareça ao coloca-la nas palavras. Peço desculpas, caso esteja "invadindo" seu blog.

    Ana Lucia




    " A dor percebida, mas escondida

    Caras espantadas, rostos embriagados de dor, posturas de espanto, sorrisos disfarçados, caminhar cambaleante, certezas em fumaça, vozes tremulas, perguntas no ar, respostas vazias,

    O branco misturado com a ilusão
    A dor que não chora, os olhos sem agua.

    As malas que vão e vem esperando o embarque. Quando? Pra onde? Horas por favor... Preciso preparar meu coracao pra não chorar ! Quero guardar o choro pra alegria, já desperdicei na tristeza! Ela não merece !

    Embarque sem volta... Só na saudade há volta !!

    A alma quer a partida pra não sentir mais dor. É melhor a dor em blocos grandes. Em pequenas porções a dor é exagerada!!!

    Todos sozinhos com um monte de gente! A dor é igual! Mas não dividida ... Não cabe mais

    E ele respira novamente... Não sei se milagre ou castigo! A dor continua, embalada por uma doce esperança ..."

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    1. Olá, Ana Lúcia. Agradeço sua leitura, suas palavras e o texto compartilhado. Que a sua dor encontre casa e trégua. Um abraço, Huck

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  2. Como é triste ver, sentir e compartilhar dessa dor.
    Como se encara o sentimento de ver aquela que um dia foi seu maior pedestal sendo toda reduzida a miangos?

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    1. Não encaro, Linné. Sou covarde de olhos e de esperança.
      Um abraço. Huck

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o Febre CRÔNICA agradece sua leitura e comentário.