segunda-feira, 1 de abril de 2013

MUSEU de mim - por Vinícius Linné


“Você tem mais dificuldade em se desfazer de pessoas ou de objetos?”

Objetos, eu respondi de pronto.

No mesmo instante, percebi o quão materialista eu devia ter soado. Mas é ao contrário, me apressei em esclarecer. É ao contrário. É por não ser materialista que me apego aos objetos. 

Cada um dos objetos do meu próprio Museu da inocência carrega em si alguma memória minha. Ao me desfazer do objeto, por mais simples que ele seja, eu tenho a impressão de que a lembrança aliada a ele se esvairia também.

Minhas coisas são meus relicários.

Com que graça eu não encontro, quando menos espero, um lápis gasto, apontado e comido. Lixo! Nunca. Nunca lixo! Tesouro... Naquele lápis está guardada a essência melhor do meu primeiro grau. As risadas intermináveis, as piadas, os olhares da Ana Cláudia (quem me deu o lápis na aula de história), a falta de motivo, a despreocupação ousada, o futuro todo vindouro...

De Ana Cláudia, hoje eu não sei. Não me importo em saber. Ana Cláudia pode ser mãe. Pode ter se mudado. Pode ter morrido a Ana. Se eu continuasse, depois dessa fase, amigo dela, cedo ou tarde ela me decepcionaria. As pessoas sempre decepcionam. Alguma coisa nos colocaria em caminhos opostos e o lápis seria, então, todo roído de puro rancor. Não foi. Nem ele nem a memória carinhosa que trago de seus cabelos compridos e da saia ainda mais longa.

As pessoas machucam.

Os objetos confortam.

Duas amigas me decepcionaram muito. Menos, porém, do que eu devo tê-las decepcionado. Não sei como chama o que ficou. Primeiro era ódio, depois despudor, por fim algo vago, como uma nostalgia do que é agridoce. As amigas se foram, ambas aos beijos na boca. Eu fiquei com o que vivemos e o que vivemos ficou guardado em dois duendes que ganhei. Um com promessa de amizade eterna (mentiroso ele!) outro como marca de saudade.

As pessoas se vão quando querem.

Os objetos ficam.

Eu a amava. Em segredo desleixado. Amava com cara de bobo e coração na mão. Eu a amava. Completamente. Ela não. Mas me deu de aniversário uma bruxa. Uma bruxa que agora eu só encaro quando está mascarada (e a máscara eu mesmo comprei, ao lado de outro amor). Ela se foi, afastada pela vida. Quando estava pronta, quis voltar. Mas eu não quis. Nunca mais quis. Eu prometi isso em uma esquina qualquer, lágrimas nos olhos. Nunca mais... Eu cumpro minhas promessas.

As pessoas perdem as máscaras.

Os objetos podem ganhá-las.

Ághata me deu uma santa de pura adoração. Ela não sabe o nome da santa. Não importa saber. Era linda e de manto vermelho, por me conhecer feito a palma da mão, Ághata sabia que eu gostaria. A santa rodopia sobre a escrivaninha de tempos em tempos. Tem uma labirintite só dela. Já caiu incontáveis vezes. (Seria suicida como Ághata?). O menino que ela segurava perdeu a cabeça coroada. E uma mão, a esquerda. Assim a santa ficou ainda mais minha (tudo só é meu depois que tem a primeira rachadura, o primeiro arranhão). Há dias em que Ághata me fere mais do que eu deveria aguentar. A santa, porém, sempre mantém o olhar doce e discreto, cochichando que, ainda assim, ela me ama.

As pessoas têm olhos duros.

Os objetos não.

Meu pai costumava estar eternamente cansado, isso quando estava em casa. E ele não estava muito. Um dia, fui junto em uma das suas viagens, pedi um leão de pelúcia e me foi dado. Surpresa. Me foi dado de pronto, sem descontos, sem reclamações (e era caro), sem cara feia. Me foi dado sorrindo o leão. Quando meu pai não estava (de novo) o leão estava. Abraçá-lo era quase um ritual, carregá-lo pelo rabo por toda parte, dormir com ele. Ainda agora, escrevendo, eu olho para o leão e me sinto de novo pequeno, de novo no meio de viagens, de novo amado.

As pessoas precisam ir e vir.

Os objetos podem ficar.

As caixas em forma de livros dadas por uma amiga mariposa me lembram da vida que precisa ser rida e bebida. A embalagem amassada de um bombom muito caro me lembra da tarde em que comi uma caixa deles sozinho, sem nem ocasião especial, puramente para me presentear. O perfume que ganhei no segundo grau e nunca gostei. O patuá dado por uma amiga meio fada meio bruxa, cujo sorriso tinha mel de se afogar. As lâminas com uma foto minha usadas na faculdade de jornalismo me lembram da descoberta do mundo e do humano (pelo menos fora da Cratera). O sino herdado de uma avó, objeto que me fala da infância cheia de proibições, pecados e vontades. Enquanto ela esteve viva, eu jamais pude tocá-lo. No dia em que ela morreu, eu o toquei e então uma tempestade varreu por três dias o céu. Um mouse quebrado, um chaveiro arrebentado, uma moeda de cobre, uma caixa de veludo, um despertador de metal, uma xícara sem asa, uma tampa de caixa, um homenzinho sem perna, uma coruja de olhos grandes, um frasco vazio: lembranças puras de pessoas que já se foram. Ou que ficaram, mas já não são mais as mesmas...

As pessoas mudam com você.

Os objetos só mudam com o tempo.

Pessoas... Objetos.... Não sei... Talvez eu tenha notado que a materialidade dos objetos tem em si mais segurança. Talvez mantê-los seja uma forma de manter comigo rastros de quem se foi. Talvez eu me livre tão despreocupadamente das pessoas porque sei que, no fundo, elas nunca se afastarão por completo. Delas sempre ficará um pouco (em mim e comigo). Talvez seja por medo do estrago que as pessoas podem fazer se chegarem perto demais. Talvez seja porque dos objetos eu posso fazer o que quiser. Talvez seja porque sou mesmo um bobo sentimental, colecionando bugigangas como os velhos colecionam retratos. Talvez eu tenha medo de esquecer. Talvez eu tenha medo de ser esquecido. Talvez seja só para manter comigo o que vivi, o que fui, o que passei... 

Não sei. Não sei. Não sei a causa mais profunda dessa minha mania de colecionar e desse apego em não me desfazer. Só sei que com as pessoas não é assim. Todas que entram na minha vida são bem livres para partir dela. Quando bem quiserem. Não choro, não lamento, não escrevo carta e ainda enterro o sentimento. Mas quando o fizerem, por favor, que deixem alguma coisa. Pode ser um botão ou um rato, mas que deixem. Deixem para eu saber que não foi mentira. Deixem para me alertarem dos meus enganos. Deixem para eu saber que, um dia, vocês existiram e foram importantes de alguma forma. Deixem e me deixem então. Não tenho lugar para muitas pessoas, eu me preencho muito. Sempre tenho, porém, lugar nas gavetas para mais um objeto. Talvez o seu seja o próximo. E talvez, mesmo muitos anos depois, quando você já tiver me esquecido, eu ainda o carregarei comigo.

Um comentário:

  1. Eta,Linné, esse texto me deu uma tristeza sã.
    Isso de partir fica lindo assim no texto,gosto tanto ,gosto sempre desses seus escritos.Um xero.

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