sexta-feira, 27 de junho de 2014

dIPIRONA - Por Vinícius Linné

Nós prometemos muito a ela. Prometemos cuidar das fundações, manter as plantas vivas, regar as samambaias e deixar o café sempre quente. Por um tempo funcionou. Mas somos distraídos demais, acabamos trancados em nossos próprios quartos. Cada um em sua janela, cada um com suas dores e ilusões e amores. Cada um mais mudo que o outro.

Mudos mudamos. E a casa também.

O mofo cresceu, as rachaduras voltaram, as janelas foram quebradas sem que nenhum de nós ousasse trocar os vidros. As samambaias morreram, o café esfriou e a vontade de escrever nas paredes foi sumindo junto com as chaves que perdemos pelos bolsos.

Entre nós, a febre esfriou. E as febres não podem esfriar, não quando são crônicas.

Por isso, um dia nos flagramos na sala, de martelos e tábuas em punhos, ambos com a mesma resolução. Era hora de lacrar janelas e portas, jogar fora cartas e plantas, admitir que sozinhos não era nossa a casa. Era hora de sair dali, seguir cada um o rumo que sua janela mostrava e deixar a casa assim, lacrada, esperando, para o caso de algum dia haver volta.

terça-feira, 24 de junho de 2014

dIZER - por Adilma Secundo Alencar.

Com tua mão na minha: atravessar faróis, ver a novidade de abrir um livro novo, conhecer lugares, fazer café enquanto você me lê seu conto preferido da sua escritora preferida. Enquanto mulheres geram filhos, meninas moças debutam, pedreiros empilham tijolos amarelo ocre, médicos receitam  comprimidos brancos e amargos, agricultores arrancam raízes da terra fofa, putas se enfeitam, enquanto o sol se exibe para os homens sãos,enquanto a vida velozmente explode em tons de vermelho, eu aqui vadiamente ocupada ensaio um outro jeito de também narrar as coisas todas que você comove em mim.
Enchendo meu abraço de calor e pressa, eu já não sei mais do resto do mundo, porque o resto do mundo não tem um convite como o seu,todo em lábio escarlate e perfume de nuvem.
Eu não quero sair de dentro dessa áurea febril.Eu quero gozar o contínuo de nossos corpos se querendo, eu estou querendo dizer as coisas que nenhuma palavra alcança .

quinta-feira, 19 de junho de 2014

cARTA DE LILA - por Vinícius Linné

Eu sabia, do primeiro Oi ao último Eu te amo, eu sabia que era mentira. Eu sempre soube que você mentia para mim. A novidade, meu amor, é que é preciso duas pessoas para mentir, uma para fazê-lo e outra para acreditar. Eu não o culpo. Eu quis acreditar.

Eu quis acreditar que era importante para você, que era a única, que era a felicidade encarnada em pele branca e lábios roxos de frio. Eu quis acreditar que seríamos felizes, mesmo sabendo, palavra após palavra que você mentia. Eu sempre soube. Era algo na sua pele, na sua aura, no modo como seu sorriso travava seu rosto, nas micro expressões que eu lia pelos espelhos.

Mas sabe, meu bem, a verdade é que eu menti também. Uma mentira só, pequena. Minha mentira foi fingir que acreditava em você. E foi preciso, meu amor, foi mesmo preciso. Sem essa minha mentirinha você jamais abriria a guarda, jamais entraria em mim. Não você, não com tantos princípios e tantos ideais. Não você com suas paixões e poesias. Por isso eu menti. Se não mentisse, jamais teria conseguido chegar perto o suficiente para assassiná-lo, como o fiz.

Perdoe-me, então, amor. Pela mentira.

Sempre sua,
Lila.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

oLHOS FECHADOS - por Vinícius Linné

É de olhos fechados que escuto todas as músicas que eu teria feito para você. Pálpebras pesadas, escuridões oculares, outros modos de ver, dessa vez por dentro. É por dentro de mim que você acontece. Suas palavras, seu cheiro, seu toque, seu calor, seu gosto. Tudo é por dentro de mim e só posso vê-la de olhos fechados. Bem fechados.

terça-feira, 10 de junho de 2014

à NAMORADA - por Adilma Secundo Alencar.

À namorada.
Às mãos dadas, luz.

Pela força nesses olhos pequenos, por esse riso com cara de besta e esse jeito bruto de ser doce e chorona, pelo seu entendimento de minha fala, às vezes, incompleta, porque eu não sei terminar alguns pensamentos. Pela vontade de viajar por aí, viajar por um livro, por permitir nossa luz no mesmo espaço, por dividir seus sorrisos que me trazem pedaços de nuvem, por me acompanhar nos cantos bonitos dessa tua cidade minha, por me deixar te ver ver o mar ao seu lado. 

Pelo beijo com gosto de café e manhã, pela comida com gosto de sol num parque qualquer, pela letra na minha pele, por todos os cantos que me trazem coisas suas: tom carmim, gosto doce, luz azul, paroxítonas, doce de leite, estilo retrô anos 30, chapéus, motocicletas, algodão doce, vestidos de bolinha e filmes de amor. Pela vinda tarde da noite, pela minha espera doce, doce como eu não sabia ser, por rir do meu medo da loucura e me mostrar que a chuva de pedrinhas não faz medo nenhum, traz natureza branca para meu cacto junto daquelas flores resistentes no quintal de casa.


Por me trazer essa pressa pelo teu cheiro, essa urgência de quem não pode esperar mais de um dia por teu abraço, pelas coisas bestas e tão nossas, pelo seu consentimento de me entender na irresponsabilidade da lida, pelo teu corpo tão encontrado no meu , pelas urgências pares de dar conta de uma poesia impetuosa que rompe a tarde de domingo e é explosão de rio desaguando, de enchente rebentando cerca.
Pela voz, à noite, querendo dengo, querendo que o final de semana não tarde.

Pela coisas não ditas e abraçadas no nosso corpo morno e cansado. Obrigada, Flor.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

gEORGE tOOKER, - por Vinícius Linné

Ele lê imagens procurando que alguma delas conte a sua história. Não há. Não há nenhuma com um homem tão só, nenhuma com letras que flutuam e se fixam na pele. Não há uma imagem de luar e sonho que seja, ao mesmo tempo, ocre, vermelha, preta e azul.

Não há imagem com cheiro de pó, mofo, café e perfume. Se houvesse, contaria parte da história dele. Faltaria ainda o cheiro de vinho, sêmen e morangos maduros (ou mofados, se preferirem a parte dele que lê Caio Fernando Abreu).

Não há nenhuma imagem com música constante e calma. Nenhuma imagem com paixão de arrebatar e vazios de traça por entre as tintas. Nenhuma com luz de sol à noite. Nenhuma com as promessas que ele tatuou na pele: The impossible is possible tonight.

Não há quadro, por surrealista que seja, que consiga tocar-lhe de leve a história, as luzes e sombras que ele esconde no olhar, as sutilezas e descaramentos que ele amarra nas coxas, as mensagens codificadas nas mãos e nas linhas dos pés. Não há. Ele não encontra tela que conte, mesmo sussurrando, a história da sua alma. Por isso ele a escreve. Às vezes ele a escreve.

terça-feira, 3 de junho de 2014

fALAVA DE AMOR -por Adilma Secundo Alencar.

Falava de amor mesmo quando estudava seriamente para o artigo da universidade, mesmo quando brigava com o filho para que enchesse as garrafas de água e não colecionasse copos sujos na pia. Falava  de amor quando explicava sobra Antígona, Freud e Clarice. Era de amor que falava quando uma flor azul brotou na sua pele, eu vi. 

Falava de amor quando um filho chutou dentro sua barriga. Falava de amor quando destacava  nas páginas de Simone Beauvoir símbolos de liberdade. Falava de amor quando brotou um girassol diante de seus olhos e uma mulher roubou seu coração.

Falava de amor quando os olhos choravam a violência dos relógios e da loucura de um coração. Falava de amor quando  reconhecia humanamente o outro mesmo diante da quantificação que sua lida imperava.

Falava de amor,
Continua...

quinta-feira, 29 de maio de 2014

dESAMOR - por Vinícius Linné

Ela não te ama mais. E pediu para eu dizer.

Ela não te ama mais, mas agora coloca mel em todos os chás. (Ele tem a exata cor dos teus olhos). Ela não te ama mais, mas deixa a janela aberta quando há tempestade e sempre que é outono. (Ela sorri toda quando uma folha seca entra pela janela. Era outono quando vocês quase se beijaram, não era?)

Ela não te ama mais, mas agora lê sonetos de Shakespeare. (Em cada um ela vê o teu nome). Ela não te ama mais, mas vê sempre os mesmos filmes, especialmente aquele do DVD que ela embrulhou para te entregar e nunca o fez. (Ela guardou até o embrulho: laço, fita e perfume).

Ela não te ama mais, mas bloqueou teu perfil no Facebook. (Só para não ver tua foto e correr o risco – ridículo – de te amar de novo). Ela não te ama mais, mas ainda ouve todo dia as tuas músicas (E chora, às vezes, naquela de que você gostava mais).

Ela não te ama mais. E pediu para eu dizer.
É verdade. Ela não te ama mais, mas amou.
E, sinceramente, foi a única.

terça-feira, 27 de maio de 2014

pALAVRAS MATIZADAS - por Adilma Secundo Alencar.

Ela arrasta meu coração por ladeiras de cidades antigas, oferece às rainhas do mar preces em nosso nome, ela come um mistério por dia. Quantas páginas escritas separando a intimidade de nosso corpo. O tempo é curto para tanto espaço alargado pelas suas mãos. Ela vai fazer enchente de tanto me trazer mar.

A força dos meus pulsos atada à vontade de levá-la para ver o abandono de uma palmeira na areia da praia, ou um sol se escondendo as serras de Jacobina, no sertão. Eu queria fugir e deitar meu sonho no dela,mesmo que seja careta e contrário à marcha do mundo. Meu delírio entre suas pernas significa uma linguagem de calor,um viço de meia noite em plena tarde clara, um dengo amolecendo o encontro dos nossos mistérios por trás da pele, por trás dos cílios,dos seios,das ancas, da língua, por trás do toque que erradia a luz é tudo mistério.

O encontro é perfume e cio espalhados no lençol, nos cabelos, escorrendo suor de flor serenando. Luzes embaixo da pele, faiscando nos olhos, nos dentes. Toda a carne ofertada a nossa fome. Nós colhemos palavras vermelhas, maduras, suadas, matizadas de cores quentes. Passamos, brilhantes, pela guerra ofertando flores.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

eSCOLHA - por Vinícius Linné

Há dias em que ele escolhe a desatenção. Sim, ele escolhe. O aleamento, a palidez, a impessoalidade de quem passa pela vida à passeio. Ele escolhe flanar nas ruas, sem dar atenção a qualquer um que diga seu nome. Ele escolhe até não reconhecer o próprio nome, não dito assim, em boca alheia, com outro tom que não o dela.

Há uma espécie de loucura seletiva, então. Uma loucura bem mansa e um pouco tristonha. Loucura de olhos baixos e baços, de não cantarolar na rua, de não cumprimentar os vizinhos, de não responder os emails. Loucura de só existir, de não viver, ver, sentir, ouvir.

Ele escolhe pausas, ele coleciona vazios, ele se deixa seduzir pelo não estar onde se está. E esse, então, passa a ser o seu ideal máximo: não estar. E não ser, obviamente. Não ser chefe, não ser colega, não ser o que sorri ao falar com quem não se gosta ou não se conhece. Ele escolhe internalizar. E, por isso, é chamado de louco. E não é louco qualquer um que abdique da razão do outro em benefício do próprio coração? E não é louco aquele que, podendo escolher, se escolhe?

terça-feira, 20 de maio de 2014

dESAGUOU - por Adilma Secundo Alencar.

Preparou um chá de canela e sentada no sofá cismou sobre os caminhos espinhosos que a levaram até ali, chorou que nem criança sem mãe. O copo de vidro, desses copos de boteco, virou mil pedrinhas transparentes. No instante do soluço e do corte no pé, ela sorriu uma alegria sem amparo e foi iluminada, o arriscado sempre fora seu amigo desde que saiu de seu canto de mundo, vasto e duro.

A dança do mundo obedece a chicotes, a angústia de saber a massa branca de nomes que segura arma tão letal, em salas limpas. Sob marquises enferrujadas, agonizam homens de sua mesma matéria, com pernas e braços apartados do óbvio conforto de ter onde ir e quem abraçar. Ela não quer orquestrar o ódio que já brilha sem nome em tantos meninos, ela queria mesmo, senhores, ela queria mesmo era humanizar, era amansar a violência nas raízes da linguagem.

Ela decidiu tomar um atalho, mesmo com um vidro espetado no peito do pé, porque os seus pés cresceram em terra seca, rachada de sol, uma terra sustentada durante o sempre pela palavra, pela promessa, pela fé nos olhos de Santa Luzia, oferecidos num pires, enfeitando a sala de sua mãe. Ela vai, porque ela é forte, é preciso muita força para se alimentar de nuvem. Deixem que ela vá, deixem.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

uM DIA - por Vinícius Linné

Às vezes, Clarissa tinha a impressão de que a vida, a vida de verdade, jamais começaria. Mas isso era antes. Agora, aos vinte e sete, Clarissa tem certeza. A vida, para ela, não começará.

É como se a vida fosse um baile de salão. Uma festa rica, em um salão iluminado de cristais, cujas janelas se abrem frescas para o verão e a noite. Um baile repleto de cetins e tafetás, lencinhos e valsas céleres. Um baile muito antigo e bonito para o qual ela não fora convidada.

Clarissa, no entanto, é feita de sutilezas e, sendo assim, ela descobriu o baile, ela ouviu a música ao longe, ela encontrou caminhos, ela desfez impossibilidades, ela espiou pelas janelas e entrou, enfim, no salão. Em vão. Entrou para descobrir que não pertencia àquele lugar.

A língua em que os outros cantavam não era a sua. Os passos da dança, ninguém lhe ensinara. Nada lhe diziam os panos, os lustres, as janelas e os cantos repletos de amassos do salão. Seria inútil, pois, ficar ali.

Mesmo assim, Clarissa ficou. De teimosa, ou de sutil, ficou a olhar a alegria que jamais lhe pertenceria. Ficou a se fascinar com a vida dos outros, mesmo que inventada. A marejar os olhos com as danças que ela nunca dançaria, a murmurar baixinho a melodia do que os outros cantavam à voz solta e que nunca seria dela. 

Às vezes Clarissa percebia a verdade angustiada: ela era só um atrapalho no baile alheio. Mas logo ela fingia esquecer e voltava a se consolar, imaginando que algum dia a notariam. Que algum dia a convidariam para uma das mesas, ensinariam a língua e a dança e diriam o porquê terem esquecido o convite. 

Nessas horas ela chegava a se imaginar amada. Coitada, ninguém a via. Nessas horas ela escondia sua certeza e tinha a esperança (de novo) de que a vida começaria, um dia.

Um dia...




quarta-feira, 14 de maio de 2014

fOGUEIRA - por Adilma Secundo Alencar.

É de sorriso o nosso encontro. O cansaço, a comida, as contas, os livros, a discrição, tudo fica abandonado esperando nossa saudade se acalmar um bucadinho e sossegar ainda que rapidamente da urgência do corpo  que a semana adia.

O lugar mais desejado do mundo é qualquer um que permita nossa nudez com o corpo e com os olhos, porque às vezes na metade de um café, na rua, de uma aula, séria, meu olhar volta-se nu para o teu e quando corre ao redor querendo chão é flagrado nu, como na primeira vez que vi as nuvens do alto, como da primeira vez que eu li Pessoa com o sangue. O que é mostrado nos meus olhos nus não é medida, é antes, desregramento, porque mais demoradamente as paisagens fixam poesias nas minhas retinas às vezes cansadas, às vezes meninas dessa vida toda. Todos os ímpetos acontecidos num passeio simples pela cidade já conhecida,vontade de conhecer o mundo todo e no fim do dia dormir na mesma cama que a tua.

Nos teus olhos com essa precisão de faca que teu rímel traça moram mil ou mais mulheres, tantas que são todas você. E todo dia é uma que tira minha roupa e acende meu olhar em imperativos minados de
pimenta, mel e cachaça. Chora lágrimas vermelhas, azuis, lilases, verdes, laranjas como o sol de verão, tem todas as cores nos olhos miudinhos , eles acendem nos meus umas luzes de fogueira de São João e de sol.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

eXORCISMAS - por Vinícius Linné

Para ti eu preciso repetir tudo. De novo e de novo e sempre e outra vez, como quem reza uma ladainha, como se eu falasse uma língua de lengalenga sem fim. Por acaso entendes as palavras que te digo? Eu rezo por ti, eu derramo bantos sobre a tua cabeça, enquanto tu praguejas e esparges merda fresca sobre a minha. Eu te abençoo, tu me esconjuras. É sempre assim. Eu te salvo, resgato, te monto em um pangaré alado. Tu me deixas, todas as vezes, como fugiria se eu fosse o próprio diabo. Teu inferno são outros. Nunca ouviste dizer?! Ah não?! Como não!? Como não se fui eu que disse e repeti, de novo e de novo e sempre e outra vez.

Vês? Não me vês. Não me ouves. Não me falas. Não me beijas. Teu inferno sou eu? Porque, sinceramente, o meu tem sido tua incompreensão. E temo que, no primeiro exorcismo, tu acabes banida junto com ela.

terça-feira, 6 de maio de 2014

oLHOS DE ESPANTAR O BREU -por Adilma Secundo Alencar.

Há dias em que não é fácil amolecer o olhar,porque há muita má vontade no mundo. Todo dia tem gente puxando o tapete de outra gente, gente irmã que só por uma estupidez muito grande se estranha.Eu não ligo a TV e quando ligo é para ter certeza que ela deve permanecer desligada, embora não veja com frequência a programação estúpida de nossas novelas açucaradas  e burras e de nossos jornais fedidos de cadáveres abandonados e legisladores engomados,mesmo assim ,ainda assim percebemos a repetição dos discursos de violência que a mídia propaga, nas pessoas próximas, nas conversas na padaria. 
É por pura irresponsabilidade que eu viro a cara para essa luta por uma vida que eu não invejo, eu não invejo homens e mulheres com seus relógios de ponto,seus cargos, suas úlceras comendo o estômago e seus olhos escorrendo ambição, me deixem passar ,senhores e senhoras, minha marca no mundo eu quero deixar nas areias dos oceanos que ainda desconheço, meus signos no mundo são de amor,são de letras derretendo em pressa de corpo.Que Deus não permita que suas mágoas e ambições pequenas e burguesas ,suas ambições de móveis novos e carros do ano  maculem por mais de uma hora meu riso irresponsável de quem ficou a manhã inteira desejando mandar flores,escrever cartas , viajar pra ver o horizonte de um ângulo novo. Eu fiz pacto de riso , fechei o corpo para a mágoa, meus pés são do samba mais que da lida, meus olhos são de meu bem, os faróis são só pedaços de tempo que aguardam coloridos minha passagem para olhar estrelas azuis enfeitando um colo de deusa de água. O sal do suor não produz tumor, passem longe de mim, senhores da guerra. Continuem sua ladainha e deixem meu carnaval,porque a avenida é minha, porque meu batuque não é de sua reza branca,porque eu não sou dada à profecias de fim, ofereço flores as suas armas, e atiço ao mar sua inveja, para ser engolida pelas ondas e pela fundura dos bichos ainda não catalogados.
Ter piedade é humilhar o outro, porque somos todos uma carne repartida, porque somos, mas senti piedade essa semana, tive piedade pela nudez suja que vi nos olhos de gente corrompida por um desejo escroto de fazer o mal, tive também medo e por medo cuidei de minhas flores, semeei minhas sementes de  sorriso no coração de quem me rodeia,porque o único imperativo é ver com olhos de sol, olhos cada vez mais amarelos para espantar o medo e atravessar esse breu que tanta gente alimenta nos olhos.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

sPOILERS - por Vinícius Linné

Todo leitor de livros acaba por se tornar, impreterivelmente, também um leitor de futuros. Para tal, não precisa utilizar-se de baralhos, linhas de mão, cristais, búzios, borras ou runas. Basta que se aprenda a ler pessoas. E sim, todo leitor de livros transforma-se em um leitor de pessoas.

Depois de páginas suficientes e de personagens surpreendentes, o leitor experimenta vivências e subjetividades diversas. A arte não é senão experimentação da vida. Já escreveu George R. R Martin: "Um leitor vive mil vidas antes de morrer, o homem que nunca lê vive apenas uma." De mil vidas vividas alguma lição se tira. Ou não?

Sim. Aprende-se a ver sinais, spoilers em marcas, expressões, falas e tons de voz. Aprende-se a analisar comportamentos, sutilezas, olhares, superficialidades, enfim, delicadas ondas que tremulam à superfície das águas e revelam nela os movimentos de dentro.

É por isso que às vezes me calo, macambúzio. É porque li. Li em alguém uma intenção, um sentimento, algo que quem não lê pessoas não foi alfabetizado para ver. Li um futuro que se aproxima, uma ação previsível que desencarretará em outra e outra, até chegar no que eu já antevi como o fim do conto.

Às vezes eu chego a falar. Cada vez menos, é bem verdade. No fundo, cansei de ser Cassandra. Cansei de ver e avisar sem que ninguém acredite: “Isso é besteira, é implicância, é bobagem, deixa assim, que mal há?” Há. E ele vem. Ele sempre vem, independente de quem não queira acreditar em mim ou nos spoilers.





quarta-feira, 30 de abril de 2014

eU NÃO SEI - por Adilma Secundo Alencar.

Um bebê é um mistério. Um parto é um susto. A ciência e a religião não diminuem o meu espanto do que é um parto, bebês não deveriam nunca,nunca mesmo morrer.Eu não gosto de assistir às notícias da televisão,coisas de morte, violência e não é por motivo político, posicionamento intelectual, não, é porque eu me comovo indecentemente. Mas quando no café da padaria, ou mesmo entre um fazer doméstico e uma leitura besta olho para a TV, eu me surpreendo com a minha falta de tato para a dor. Um bebê é um pedaço de nuvem,aqueles olhinhos reconhecendo o mundo com um espanto que eu teria se não tivesse vergonha de mostrar meu medo, meu desamparo. A imensidão de uma casa para os olhos de um bebê deve doer,deve sim, sair ou chegar. Por aqui tudo está pronto para enquadrá-lo, terá uma língua e logo depois de uns poucos anos uma gramática lhe dirá de uma estrutura óssea que move essa água toda dita língua.
Eu não saberia o que fazer com um bebê nas mãos, eu tremeria como uma criança no primeiro dia de aula, como no meu primeiro dia de aula em que eu me senti triste, eu me sentiria Deus, "um Deus de saia" com uma criança nas mãos, por isso meu espanto e encanto por todas as mulheres que parem filhos para o mundo, porque o que é um filho? Eu penso,sem experiência na maternidade, que se leva a vida inteira para saber e não se sabe ainda.
Eu não saberia direito ver um filho crescer sem chorar, eu não presto para essas emoções, eu sou muito comovida de absurdos, eu me sustentaria em todas as coisas bonitas do mundo: terra, galho,flores,vento,água e lhe ensinaria que eu não sei das coisas e pediria perdão também , pediria perdão pela violência desse mundo feio que uma mãe mora querendo comer uma via láctea, querendo beber nuvens de algodão doce, eu sei que o primeiro não para um filho deve doer muito, doer na mãe, doer no útero morada de um coração para sempre. Um cordão umbilical é uma metáfora.
Bebês são milagres de carne e fragilidade saindo de dentro de seres também milagrosos e místicos,porque embrutecemos tanto a ponto de matar?
Eu não quero a notícia da TV, o que eu diria para um filho que soubesse que um recém nascido foi morto.
Eu não presto para escrever sobre essas coisas, porque é assombroso saber que os olhos de um bebê foram cerrados por uma maldade que não tem nome nem porquê.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

mUDAR - por Vinícius Linné

Diante de toda tela em branco a vontade é a de não escrever. Diante de toda perspectiva de mudança a vontade é a de permanecer. É cômodo não fazer nascer o que ainda não existe. É cômodo deixar as palavras no peito, os móveis na casa, os livros na estante, os relacionamentos no mesmo status, os esforços no mesmo emprego. É cômodo ficar.

Mudanças assustam com seus riscos: perder coisas no caminho, riscar móveis, rasgar livros, arranhar sentimentos, perder estabilidades. Mas, mudanças também tentam com seus encantos: encontrar novos caminhos, comprar outros móveis, reencontrar antigos livros, fortalecer sentimentos, ganhar reconhecimento pelo que se faz...

É como se eu precisasse sempre escolher. Mudar ou não? Arriscar ou não? Tenho aprendido que Sim é sempre a melhor resposta para a vida. Não importa o que virá, nada pode ser pior do que nada vir, do que a tela continuar sempre em branco, vazia, angustiante. Tenho me lembrado, cada vez mais, de um menino que queria colecionar vivências. Um menino ávido de mudança que passou tempo demais perdido.

Um menino que descobre agora, como homem, o orgulho de ter sua casa, seus móveis, sua mulher, sua vida, seu trabalho, seu controle e sua escrita. Um menino que descobre, abismado, que colecionar vivências e escrever por telas em branco é, simplesmente, dizer sim e mudar quantas vezes a vida permitir.

terça-feira, 22 de abril de 2014

vERDE SEM NOME - por Adilma Secundo Alencar.

    Um homem olhando o mar ficou grande milagrando palavras salgadas: onda, maresia, conchas, pedras, horizonte aberto. Ele quis comer um pedaço daquele verde sem nome, o homem se jogou ao mar e foi abençoado por todo o mistério fundo daquelas águas. Ele pisou na areia molhada e de volta ao trajeto  perdeu a comunicação comum, seus olhos ganharam um arredondamento pueril, desses que as crianças têm antes de um ano de idade.
     Ele movia os olhos translúcidos  e revestia o mundo com um derrame de amor tão bruto que quase fez seu coração, tão quieto até aquele dia,explodir descompassado. Aos poucos foi retomando o equilíbrio físico, digo físico,sim, pois dentro das coisas inquietas que a gente ordena com as palavras, nesse dentro inquieto ele sentia uma chuva de poesia querendo tinta, querendo papel. 
     O milagre que o mar gozou nos dentro daqueles olhos criou poeta, poeta desses de adivinhação. E foi assim que nasceu um artista.Nesse dia ele soube para que veio parar nesse espaço e nesse tempo. 
      O mar criou um artista de olhos marítimos , tudo que ele desenha faz um mar sangrar nos olhos de quem vê.




quinta-feira, 17 de abril de 2014

sEXTA-FEIRA SANTA - por Vinícius Linné

Clarissa não crê em Deus. Não mais. Mas crê em tradições, crê no passado e crê nas lembranças que tem. As lembranças das velhas sextas-feiras santas, seu dia preferido, o dia em que a mãe louca não podia gritar.

Ainda hoje, Clarissa não come carne em sexta-feira santa. Não por medo do pecado porque isso já não existe, não depois de tudo. Não come porque de criança era assim. O peixe de que ela não gostava, a sopa de leite intragável, um desgosto de paladares, mas um sabor feliz no dia. A mãe não podia gritar!

Com a avó aprendeu outro costume. Era preciso confessar-se. E assim Clarissa o faz. Sem fé. Mas faz. Faz porque o sentimento de alívio não depende de acreditar. Alívio de quê? De ser quem se é. Clarissa se confessa assim:

— Padre, perdoai-me porque pequei em pensamentos e atos, contra Deus e os homens.

Depois ela diz baixinho:

— Padre, eu mataria, se fosse possível.

O padre a consola:

— Minha filha, em certas circunstâncias é normal pensar assim. Para defender a própria vida, por exemplo, mesmo sendo pecado, é normal a pessoa pensar que mataria alguém se fosse necessário.

— Não, não se fosse necessário, padre... Eu disse “se fosse possível”. Eu mataria se fosse possível. Se eu não pudesse ser descoberta, se meu crime não tivesse sobre mim qualquer consequência. Descobri na aula de filosofia. A professora nos apresentou o anel de Giges. Eu mataria. Não com armas, padre, não com veneno sutil, padre. Eu mataria com as minhas mãos, com as minhas unhas crescidas, com meus caninos, padre.

O sacerdote mandou que ela saísse dali, rezasse um terço e ficasse em paz. Enquanto Clarissa saía, ele mesmo lembrou-se do anel de Giges. Um anel capaz de tornar invisível quem o usasse, possibilitando que qualquer crime ficasse sem suspeito e, portanto, sem punição. “Com esse anel – pensou o padre – também eu mataria. Começaria por essa menina má. Mas antes, a estupraria.”

quarta-feira, 16 de abril de 2014

sIGNOS - por Adilma Secundo Alencar.

Uma gota de chuva, um copo de café com leite, um botão vermelho na sua blusa, em transe ardente de minhas vontades desmedidamente prontas para seu sim, eu já não sei levar os dias sem ressignificar as flores abertas em todos os cantos anunciando sua vinda. A água insiste e rompe os ferros dos trens, a sintaxe das placas, as modalizações todas amolecem cadentes num imperativo seu: vem
Não fico, faço festa pagã para jogar suas rendas rente aos pés da cama, rentes à calma que precede o beijo.  Uma pétala nua embalando ventanias, um canto de sereia anunciando naufrágios, abismos de carne e dentes mergulhando num rio morno para legitimar a língua, fazer verbos sustentados numa gota de arco-íris cismando nas retinas nuas de sua meninice, porque seus seios são meus dois olhos em farra de samba , meus dois olhos nadando em beleza de carnes nuas.

Cismar na escolha do batom é sina de vermelho , é sina de cigana doida enlouquecendo meus lençóis, revirando retalhos de poesias azuis, tecendo lã amarela nas manhãs de outono. Na desrazão do signo e no encantamento das letras abrindo um universo de raízes ,de sumo, de carne e osso. O espaço de todos os signos molhados abençoando a semana de fruto, de flor e vida. Porque é de água seu signo e minha sede.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

vÍCIO DE SER - por Vinícius Linné

Por que você é assim, hein, tão afeito aos extremos tão afoito em sofrer? Por que você precisa descer até o último degrau antes de descobrir que a piscina não dá pé? Por que, se no terceiro a água já havia engolido seus cabelos? Eu mesmo não compreendo. Não compreendo a ânsia de se entregar. Se fosse ao amor, talvez eu compreendesse. Mas ao sofrer? Não, ao sofrer eu não compreendo. E mesmo assim você se entrega. Se entrega como se seu corpo fosse programado para isso. Como se a falta de ar, a pressão no peito, a morte próxima, fizessem parte de você. Fazem?

Outro dia eu li que nossas células se viciam em certas sensações. Seria isso? O hormônio do sofrimento é sua vibe, sua viagem, sua fissura, seu vício?

Você me cala e pede licença. Diz que não me deve explicações. Grita, xinga, esmurra a porta antes de abrir e bate ao fechar. Anoitece. Você não volta. Anda pelas ruas como que submerso na piscina, sufocando, bebendo o ar em goles desesperados. Sofre. Na rua você sofre. E é, então, feliz.

terça-feira, 8 de abril de 2014

gENTE - por Adilma Secundo Alencar.


No meio da multidão tem gente vendo coisas abandonadas: um pedaço de céu, um pedaço de bolo de milho, um trecho de um poema antigo resgatado num papel amarelo, um envelope, tem gente selando cartas e aprendendo o movimento das flores. 
O trabalho repete o roteiro e o café convida o corpo para um livro vermelho, pelas páginas de romã de lábios em sim, pelas vontades abrindo botões e mistérios, pelos largos caminhos da comunhão das coisas sofisticadamente simples, por ser irresponsavelmente doce, os olhos dela crescem nas cores quentes e prendem o afago mais íntimo, a força mais extrema como um rio turvo em correnteza iluminando uma manhã no mato ermo de gente e de bicho.

Alguns homens apartam bezerros no interior de uma cidade qualquer e desejam água, fumam fumo de rolo e cismam na seca e no céu, outros nas salas velhas e sábias e frias das universidades tentam entender a velocidade dos beija-flores. Tem gente rindo das notícias e fazendo poemas modernos nas portas de banheiros público.
A todo momento tem gente pulsando, pulsando grampo, faca, folha, rima, ramo verde, filho,  riscos, desenhos, discos, código de célula, de cédula. 
A todo momento tem gente.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

aLGUÉM - por Vinícius Linné


“[...] Acho que aprendi o que vou contar com meu pai. Quando elogiavam demais alguém, ele resumia sóbrio e calmo: é, ele é uma pessoa. Até hoje digo, como se fosse o máximo elogio que se pode dizer de alguém que venceu numa luta, e digo com o coração orgulhoso de pertencer à humanidade: ele, ele é um homem. Obrigada, por ter desde cedo me ensinado a distinguir entre os que realmente nascem, vivem e morrem, daqueles que, como gente, não são pessoas.”  (Clarice Lispector, em ‘A descoberta do mundo’.)



A mulher, muito loira, contava-me, entre baforadas de cigarro, a história assim:

¬— Quando eu era moça, veja bem que absurdo, quando eu era moça, uma vez uma professora de escola, muito exigente, chata mesmo, disse-me: “Tu nunca vais ser alguém”! E veja só! Veja onde eu cheguei! Veja quem eu sou agora! Veja bem! Ela estava errada! Eu Me Tornei Alguém.

Olhei. Mas olhei com meus olhos de cobra, herdados das mulheres da família. Olhei com sinceridade e olhei verde, que é meu jeito de olhar quando me dizem “veja bem”. E não vi. Ou melhor, vi. Vi roupas caras, diploma na parede, carro importado e cargo importante. Mas Alguém... Não, Alguém eu não vi.

Era toda ela equivocada. Caía na crença do que lhe diziam, sem pensar sobre. Talvez eu devesse ter lhe dito a verdade. Não disse. Deixei para que um dia ela a descubra. Ou, quem sabe, deixei para que, ignorante, ela continue feliz, nutrindo sua imagem falsa de ser alguém.

Afinal, se eu lhe dissesse “Mas o que é ser ‘Alguém’?”, ela, de súbito, entraria em contato com as rachaduras de sua máscara e não, não sobreviveria ao choque.

A vocês, esclarecidos, a vocês eu digo: o que é ser Alguém? 

O rico dirá aos pobres que “ser alguém” é ter dinheiro.

O doutor dirá aos analfabetos que “ser alguém” é ter estudo.

O chefe dirá aos empregados que “ser alguém” é ter um cargo.

Estarão os três errados. 

Quem é Alguém não sente a necessidade de se afirmar como tal. Isso só para começar. Além disso, uma resposta assim revela um erro básico, que um Alguém jamais cometeria: não saber diferenciar os verbos SER e TER.

TER dinheiro e não SER rico de espírito é desperdício. TER diploma e não SER sábio é ignorância. TER um cargo e não SER líder é só mais um aborrecimento. Desperdício, ignorância e aborrecimento não fazem de uma pessoa um Alguém.

Conheci ao longo da vida analfabetos pobres e desempregados que eram Alguéns fantásticos. Minha avó é um exemplo. Ela era Alguém. 

Afinal, ser Alguém é reconhecer o humano que há no outro. É respeitar e respeitar-se. Sobretudo isso: respeitar-se. É manter-se fiel aos próprios princípios, é não calar nos erros, nem deixar-se comprar por muito ou pouco. É tornar leve a existência do outro. Ser Alguém é fazer sorrir. É ser simples, é ser útil, é ser bom. É transformar. É salvar um dia, uma vida, um arquivo que o outro esqueceu aberto. Ser Alguém não é ter grandes coisas é ser uma pessoa nos pequenos atos. É romper barreiras, deixar marcas e acreditar.

A loira, entre baforadas, não via o que todos em volta viam: ela era Ninguém. A personificação do Ninguém. Toda ela recoberta de ignorância, gozo vazio e ouro. Toda ela benfazeja de fumo, preconceito e sexo. Toda ela reluzente de arrogância, superioridade, intolerância e raiva. Toda Ninguém, mascarada como em baile, iludida como em show de mágica, tola e pintada feito um palhaço triste de circo. E eu tive, então, pena dela. 

“Eu sou Alguém” é paradoxo. É frase que não se pode dizer porque, quando se diz, revela-se uma mentira. Isso a loira, tão cheia de si, não sabia. Não sabia do desprezo dos outros, dos comentários, das maldições sussurradas que nunca lhe seriam dirigidas se ela fosse Alguém. Se ela compreendesse. Se ela escutasse. Se ela, como humana, se humanizasse.

Clarice aprendeu isso com pai. Eu aprendi com Clarice. Mas não, eu não lhe disse. Deixei que a loira continuasse iludida. Talvez eu o tenha feito – e o texto não é sobre ela, é sobre mim –  porque para mim falte muito, também, para eu chegar a ser Alguém.

terça-feira, 1 de abril de 2014

mALUCA -por Adilma Secundo Alencar.

          Ela comprou canetas coloridas e um par de sapatos vermelhos, ela faz compras, artigos, biscoitos, birra, cartas, planilhas, sopas, riscos, rasgos. Ela é maluca, ela faz amor com a chuva, na chuva, ela está presa a um mundo de pequenos milagres e certa vez chorou vendo um nascimento de sol numa Segunda nua cheirando a vodca. Ela pode a qualquer momento eternizar um rosto e minar de amor suas mãos firmes ou chorar uma angústia primária e sem nome e  de repente fugir deixando seus dois filhos,porque uma barriga com gente é um encantamento que ela não soube ter, não sabe, não soube.
     Mas há filhos seus, porque suas retinas reconhecem a mesma carne sua multiplicada nos rostos outros e é por isso que evita, avilta, prescinde da guerra, porque os nós das almas alcançam menos entendimento que fado.
     Na explosão tímida de uma palavra atravessando a garganta com menos certeza que tremor, com menos medo que vontade, como as unhas crescendo indiferentes à vontade, como uma planta, uma palavra que quer romper uma língua, ou um imperativo que quer deitar numa cama, nessa explosão anunciada pela sua respiração,ela dança.
      Colorir o sal dos dias e plantar pequenos milagres porque é só por amor que se vive, ela sabe,o resto é entulho e mágoa deixando a gente triste.
Por amor, as mãos, apesar do avesso, ainda fazem carinho, por amor ela acorda para o mar de milagres, do pequeno quarto come superlativos de fantasia pelos  cantos mais escondidos do mundo.
Ela é maluca.

quinta-feira, 27 de março de 2014

sUPERSTICIOSO - por Vinícius Linné

Não sei se passei por debaixo da escada errada, se quebrei espelho sete anos atrás ou se derramei sal sem jogar uma pitada por sobre o ombro direito.
Não sei.

Não sei se sentei em algum chapéu, se cortei as unhas em noite de lua nova ou se calcei o sapato esquerdo antes do direito.
Não sei.

Quem sabe foi algum gato preto que me cruzou o caminho. Ou os três que criei. Ou aquele que tatuei...
Não sei.

Será que deixei de bater na madeira? De fazer figa? Esqueci do sinal da cruz? 
Ai, Jesus, não sei.

Será que foi o elefante da sorte que eu quebrei? O pé do coelho que eu não arranquei? O trevo de quatro folhas que eu nunca achei?
Não sei.

Abri guarda-chuva na sala? Matei aranha? Grilo? Esperança? Lagartixa? Brindei em copo trincado? Foi aquela coruja que eu não espantei? Foi?
Não sei.

Só o que sei é que num cruzar de facas, num virar de chinelos, numa volta completa em torno da casa, numa praga de madrinha postiça, numa sexta-feira, bem, bem treze, eu encontrei você.

terça-feira, 25 de março de 2014

cASMURRO - por Adilma Secundo Alencar.


Azul rasgando as retinas dos que ainda olham para o céu. Mas um Casmurro moderno quebra sua força de amar.É preciso sair dessa,Pedro. Ela pega firme no seu pulso de menino, você não vê. Esses tênis modernos,essa sua fala embebida em psicanálise não esconde essa sombra, esse gene de Bentinho escondido entre as flores que compra, que oferece . Ela é de luz, homem. Não é preciso força, ela está derramando aqueles seus olhos que cabem o mundo, que cabem o mundo,mas ela quer você. Ela teria um filho seu, se vê no jeito que ela cozinha, assim como nas suas construções sintáticas, o tanto de amor que ela emana com o cheiro libidinoso de seus perfumes para esperar sua chegada, guarda essa sina de homem triste, o céu de março desaguou flores no seu jardim , deixa essa dureza de rotina e compra uma poesia para ela, não esconde esse rompante escarlate. Esses suspiros são dela, não hesite em dizer, não perca essas nuvens lhe levantando do chão, as palavras ofegantes em seu pescoço são suas somente. Não seja triste, não deixe passar essas alegrias alaranjadas, se deixe,os braços dela são fortes como uma flor.
O medo é um arapuca para um rapaz tímido como você. Solte essas amarras e abra um sorriso,antes o escândalo que a palavra não dita, que sejam de luz os dias todos seus. 
Vença o medo de parecer ridículo e ingênuo, compre passagens, recorte pedaços de seus dias e divida com ela, não é fraqueza querer dividir um poema comprado na rua, uma novidade no céu, ou um tesão descabido num vagão de metrô. Não ouça amigos infelizes, acorde antes com os poros, abre os olhos sobre os cílios mornos e longos de seu bem, omitir as poesias que escorrem de seus gestos pode lhe trazer um mal da alma,pode emudecer os acordes dos anjos ébrios que embalam sua espera por ela.
Seja, homem, avesso aos manuais  que capitalizam o amor em imperativos na seção de auto-ajuda, às convenções burras que inibem sua sensibilidade, aos porquês que justificam o amor, seja combustão de palavra e pele, combustão.

quinta-feira, 20 de março de 2014

rEVOLTA POÉTICA - por Vinícius Linné

Hoje é dia de texto e qual vai ser o pretexto para que tua mão não te exponha o coração? 

Nenhum. Cansei de pretextos, de preposições e de censuras tolas. Externas e Internas. Hoje me disse Elisa: “Escrever é um parque de liberdade”. Verdade!

Verdade e agora escrevo o que eu quiser e apanho quando o soco vier. Tapa no rosto, cuspida no olho, pontapé. Que esbravejem as varejas. É para a merda que elas voltam. No fim do ano ou do dia. Que posso fazer se não lhes agrado, se não é de merda minha poesia?

quarta-feira, 19 de março de 2014

cOSTURA - por Adilma Secundo Alencar.

         A vontade apressa o corpo e alonga a semana. Não li aquela reportagem sobre os jovens da Crimeia, ouvi um relato ou outro sobre a Copa do Mundo, porque as  notícias todas do mundo me chegam num burburinho besta, num insistir cansado. Às vezes é assim, me importa o vizinho, o próximo,mas às vezes é assim de um cansaço cinza que o mundo se apresenta aos meus olhos e ouvidos. De repente, eu quero deixar as teorias dissertativas e saber sobre comunidades sustentáveis. 
          Eu vou aprender a costurar e farei vestidos de todas as cores e estampas para enfeitar minha mulher, e saias de cores quentes para ela me despir,porque eu não vejo nada mais útil do que espalhar carinho nas costuras, nas curvas, na nuca, no íntimo, nas flores, nas mãos, na barriga macia e mãe, no avançar do Sol num céu de língua. É um derrame vermelho nas minhas retinas alaranjadas de sol de dentro, de sal de suor de fora.
     A pressa que rege as mãos de motoristas apressados, de corretores insones, do escrivão sem sentido,não é a mesma pressa de minha espera pela presença dela, porque sua chegada amolece meus braços que desesperados pela sua cintura,apertam alegres e ingênuos sua primeira chegada,porque sua segunda chegada é precipitação das minhas mãos sedentas do espaço que teu corpo encerra,a sua segunda chegada é corrida de meus sentidos todos.
Sua presença alimenta esses meus sentidos famintos.
        Comer todas as suas semânticas e dormir na sintaxe mole e lânguida de seu corpo exausto.

quinta-feira, 13 de março de 2014

pANDORA - por Vinícius Linné

Quando morreu o escritor abriu-se a caixa de pesadelos. Pesadelos dele. Febres. Ânsias e vômitos. Os escritos que ele guardava com medo que alguém lesse. Abriu-se a caixa. Derramou-se no chão o lodo de tinta má em papel ruim.

A viúva, depois de ler as primeiras páginas, pediu que jamais se pronunciasse novamente aquele nome na casa. Para ela, o marido estava morto e enterrado. E estava. Ao contrário do escritor, ela nunca possuíra muita criatividade para se expressar.

Os alunos da faculdade local se debruçaram e dissecaram cada letra, cada palavra, cada vergonha. Se os outros soubessem.... Se os outros soubessem.

Eis que surgiu então a agenda. Páginas numeradas. Uma delas faltava. Na página seguinte, letra torta, que em nada combinava com as grafias controladas do escritor: “O dia de ontem jamais existiu”.

O escritor nunca jogara fora um papel. Prova disso eram as listas de compra “Banana, Papel Higiênico, Maçãs, Veneno”. 

A folha de agenda (numerada ainda!) precisava estar em algum lugar. O que havia escrito nela? O monstro dos monstros. 

Se coisas tão ruins ele havia guardado em outros papeis, o que mereceria a fúria de uma página arrancada?

Clarissa quis descobrir. Estava ela entre os estudantes. Revirou armários, fundos de gavetas, tábuas soltas do assoalho. Nada. 

No quintal, entre as hortênsias, uma ponta de caixa. Desenterrou-se. Estavam certos. O escritor nunca jogaria uma página numerada fora. 

Dentro dessa caixa, bem dobrada, estava a página arrancada. Amarela. De cor, não de tempo. Afinal, era do último ano.

Clarissa a desdobrou com cuidado imenso. Tensa. Que coisas estariam escritas ali?

Nada. Na folha arrancada só um desenho. Dois pássaros mortos. Clarissa foi a única a entender.

Ela entendeu e calou.

terça-feira, 11 de março de 2014

vER - por Adilma Secundo Alencar

     Romper as amarras da semana com o mínimo de poesia, com a memória de beijos, o olhar de espera., porque a vida é um cismar contínuo ,de mel, de garapa, de sal, de saliva e de palavras dissonantes. E no silêncio  de um abraço,explodem alegrias sem nome. "A vida é generosa".
É de abraço e de força que as ternuras me tomam o olhar. Não há tristeza ou mágoa que valha mais que mãos dadas, flor nascendo, pétala caindo,cílio caindo, uma vontade vagabunda de tomar o mundo e espalhar palavras em qualquer canto.
   O mistério de um dia nascendo azul,laranja,amarelo, nascendo vermelho, fazendo carinho na grama, no asfalto, esse mistério atravessa o peito e brota milagre aos nossos olhos fatigados dos códigos da semana. O nosso tempo anuncia crueldades.Condenam o amor, sugerindo-lhe ordem, matam, exaltando um Deus de amor, cresce o sangue no olho e padecem as mão dadas. No receio desse estreitamento de vida, na angústia das coisas doídas que as leituras impressas revelam, eu tomo tua mão  e colho girassóis. 
   Recuso-me à raiva, os ônibus parados, o meu signo pré-datado, as letras de meu nome classificadas numericamente numa multidão de desconhecidos, os prazos prevendo e permitindo minha fala ao longo de um módulo, esse crachá pesando uma âncora, pendurado no meu pescoço. Eu me alimento de luz esquentando minha cara, de cheiro de livro, de visgo de noites insones, de cheiro de sereno, de café no gosto da tua boca, de dividir um céu inteiro com tua imaginação, porque eu sou dada às alegrias, sou ausente de guerra,minhas mãos grossas e tímidas não sabem guerrear, com poesias roubadas e os olhos em festa, eu vivo.

terça-feira, 4 de março de 2014

bONECA - por Adilma Secundo Alencar.

          Terça de carnaval e tempestade de verão. Uma boneca molhada pendurada no varal lembra uma infância distante. A jovem, de 23 anos e nenhum amor, é feliz e anuncia nas calcinhas e nas saias de renda sua disposição para a alegria.
    Um anel enfeitando sua mão esquerda  exibe mais vaidade que vínculo.Discursos em luta corporal com as leis do mundo cintilam guerra nos seus olhos pequenos.Fez renda,, fez festa no corpo de meninos nus, fez rasgos no coração de sua mãe.
     Ela fugiu para uma cidade estranha, com gente estranha. Hoje nessa terça de carnaval, essa boneca velha ,observada de longe, é parte de uma passado morto.

segunda-feira, 3 de março de 2014

cONJUGAÇÃO DO VERBO iR - por Vinícius Linné

É carnaval e eu fiz tantas curvas que nenhum samba me achou.

Fui para onde o vento pinta tudo de poeira vermelha, transformando pessoas em anjos barrocos.

Fui para onde as borboletas são ninfas azuis que seduzem, provocam e se escondem na hora dos retratos. Borboletas que acreditam no que ainda lhes disseram os índios: capturar suas imagens seria capturar suas almas.

Fui para onde as Iaras pedem licença à Iansã e penteiam os cabelos nas quedas d’água das pedreiras.

Fui para onde existem onças nos olhos dos gatos. E gatos com olhos de mato.

Fui para onde a mata faz fumaça e canta coisas de arrepiar.

Fui para onde as caiporas caçam e os cães ninam os filhotes alheios.

Fui para onde os facões crescem em árvore e avisam no caminho que há guerra para quem vier.

Sim, fui para onde as pessoas se matam e abandonam casas ao fugir.

Fui para onde o chão é mais duro e puxa mais forte quem dele se aproximar.

Fui para onde as pessoas se acostumam (ou não) com a prisão.

Fui para onde as Igrejas rezam sozinhas, com vozes de quem já morreu e repetem os encantos que as cercam sem cessar.

Fui para onde o rio é mistério e aparta línguas, costumes, cores e olhares.

Fui para onde brotam lodos e peixes dentro das máquinas de fotografar.

Fui para onde a tentação de encher os bolsos de pedras é grande, lá Virgínia jamais poderia estar.

Fui para as quedas que me acompanharam ao voltar. O barulho daqui é agora o mesmo de lá. A chuva é água do peral e da queda daquele que tudo engole.

Fui. Sim, eu fui.

É carnaval e eu fui para dentro de mim.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

pORQUE- por Adilma Secundo Alencar.

   Porque Madalena se dizia só, mesmo na confusão dos bares,nas orações de domingo e o no peito aberto cheio de raízes molhadas, mesmo depois de um amor luzente que por dias levou seus olhos sobre um pires.
    Porque Madalena acredita no amor,mesmo depois da travessia do abandono frio numa manhã fria de junho, mesmo depois de perder a vontade de parir,mesmo depois de rasgar as passagens e adormecer os sentidos.
  Porque Madalena sabe fazer carnaval, mesmo nua daqueles confetes fluorescentes, mesmo depois do calvário e da vontade do passo para trás,mesmo depois do luto nas unhas e da solidão da carne.
   Porque Madalena é assonante em a, e provoca pulmões cheios de desejo carmim, mesmo depois do afogamento no sal, mesmo e apesar dos nãos e das pedras atiradas a sua porta.
   Porque Madalena é palavra, mesmo depois dos compêndios secos de tantos homens e do açoite de palavras acostumadas, mesmo depois do soluço de uma noite sem lua.
     Porque Madalena é mato, mesmo e apesar das sepulturas dentro do peito, das paredes mofadas e da nódoa nas mãos.
   Porque Madalena é rasgo,é fresta, é cicatriz, é sina, é sangria e semente.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

pRESUMIR - por Vinícius Linné

Quantas coisas você presumiu quando eu sumi?

Você presumiu que eu não voltaria, então apagou as fotos, os traços, os riscos de giz e as manchas dos meus pés nas paredes azuis. Você limpou os armários, arejou o quarto e despejou na pia o resto do perfume meu. Você queimou os papeis, doou os livros e deu meu canário para o cachorro comer.

Você colocou o vestido bonito e saiu e dançou e cantou e voltou para casa já com outro não-eu. Você deitou com ele na cama que era nossa, colocou meu último CD de fossa e disse meu nome baixinho bem na hora H. Depois me dormiu e esqueceu.

Você presumiu que eu arranjei outro alguém, lhe fiz três filhos e comprei um novo canário, dessa vez belga. Tudo em meia hora só. E por isso vingou-se até me rasgar os vestidos e me arrancaria das orelhas os brincos, seu eu não tivesse lhe segurado de vez.

Mas, meu amor, eu só fui ali comprar cigarros!
Não me enganes que tu não fumas.
Eu sei. Eram pra ti.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

a FORÇA DOCE DE AÇUCENA - por Adilma Secundo Alencar.

Eu não sei dizer direito. E se eu fizesse de nossa natureza verbo, o que eu diria desse meu olhar tonto de desejo? Qual seria o nome dessa sua  violência açucarada de canela e cereja? 
Essa explosão em força.
Você tomou com a força de seus olhos e a ousadia de sua boca todos os meus advérbios de intensidade. E de tanto e tanto desejar sua língua, esse verão de 40 graus fez açude nos nossos lençóis amassados.
Olhando sua pele sob a luz da lua, fez sentido desde a pedra à escritura em ofício o registro de seus encantos de mulher. No visgo do desejo, na sagração da carne em oferenda ao mar entre suas pernas, se deleita no arrebentar das ondas, enquanto cai por terra o pudor imoral de quem desconhece rios e raios desse fevereiro agudo.
Rosas e letras, riscos e rasgos. De sangue e de letras surgem cicatrizes e flores, e quando você me dá sua mão, eu seguro meus verbos mais bonitos. Os meus signos nus descansando nos seus braços são seus. São suas também minhas horas de dengo, minhas receitas de bolo, e as músicas do Marcelo Camelo.
Eu queria tecer uma colcha de retalhos com suas cores, fazer uma colagem com seus cabelos curtos, seu batom rosa cintilante, seu vestido azul, seus cílios descansando no meu travesseiro, sua mão pequena tomando minha nuca, suas cerejas, seu joguinho de jujubas no celular (que certamente tem outro nome), seu playlist, bolo de limão, caipirinha de maracujá, Clarice, sol de três da tarde, cio, rede, grama, sessão das seis, salto, rímel, peitos queixo, passos, pele, pranto, letras, o livro das flores, as músicas do Caetano, a doçura de Caeiro.
Mas eu não sei tecer essa literatura de plasma, de folhas, de algas que tanto você gosta, eu só sei olhar, com um jeito besta e meu, eu só sei o susto de ver você arrebentando tudo como o mar em dia de ressaca.


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

sENHORA CABELEIREIRA - por Vinícius Linné

Clarissa não brincava de médico. Não queria ter ciência do corpo alheio e tampouco que conhecessem o seu lhe interessava. Mesmo assim, criou uma brincadeira de se aproveitar: “Senhora Cabeleireira”. Como se pressupõe, não eram os corpos o interessante, mas as cabeças, ou, antes ainda, os cabelos; tudo bem, confessemos, o que realmente interessava à Clarissa eram as carícias.

Havia um menino na rua de baixo (qual era o nome do menino?) que brincava com ela e procedia bem assim: batia na parede para fazer de conta que era na porta, depois dizia: “Senhora Cabeleireira, vim cortar os cabelos! Quero o mesmo de sempre!”. Ditas essas frases, ele se sentava no degrau mais baixo da escada e, de costas para Clarissa, deixava que ela o penteasse demoradamente.

Não havia corte, havia Clarissa de olhos fechados, deixando os dedos brancos percorrerem os cabelos do menino (quase consigo lhe dizer o nome, mas ainda não). Havia a sensação quente que aos poucos amortecia e disparatava a menina. Clarissa já adivinhava que algum dia dedos como os seus se embrenhariam naqueles cabelos escuros, grossos como pelos de cachorro, e ali se contorceriam de prazer.

Às vezes, sozinha, Clarissa lembrava da sensação e sua mão dançava no ar, como se repassasse contornos, redemoinhos e o arrepio causado por um toque desavisado na nuca do menino (cujo nome ainda não digo / não lembro). A nuca quente, às vezes suada de verão, às vezes picada de insetos, às vezes pedindo um beijo que só mais tarde viria, eriçava-se toda. E Clarissa terminava com o brinquedo então, ofegante.

Um dia o menino (e talvez seu nome fosse mesmo “menino”) cansou de ser o cliente. Queria ser ele o Senhor Cabeleireiro. Melhor se fosse, ainda, com outro menino. Assim podia fazer-lhe a barba também, como Seu Diógenes lhe fazia com o pai. Mas contentou-se com Clarissa. Alheio aos intentos da menina com aquela brincadeira.

Quando ela disse as palavras, elas saíram tremidas. Era demais a sensação oposta, entregar-se, ser ela a selva branca de inverno na qual os dedos do menino se perderiam por descaminhos e desvios, cabeça, nuca, costas, demoradamente. Sim, ela esperava que fosse demoradamente.

Ele, obviamente, não tinha tanto tato. Puxava forte e fazia dores. Seria sempre assim com os meninos, Clarissa tinha dessas intuições. De todo modo, continuava muda, de olhos fechadíssimos, enquanto era tocada. Acariciada. Quase lambida pelos dedos dele.

Muito tempo passou sem que Clarissa abrisse os olhos ou o menino (sem nome?) dissesse palavra. Ele estava concentrado em fazer nela uma trança. Uma trança longa e dourada. Linda. Desde a testa até além da altura da nuca.

Ah, Clarissa... Ela deveria ter adivinhado quando o silêncio foi cortado por um estalo rápido. O menino (e nunca mais saberei seu nome) lhe cortou a trança rente ao couro. A trança longa e dourada e linda repousava feito um rabo de bicho morto nas mãos dele. E ele ria, ria enchendo a rua e a tarde de som. Clarissa abriu os olhos incrédulos e não sabia o que sentir. Primeiro viu aquele rabo, aquela corda, aquela trança de sisal e pensou ser só piada. Ele a devia ter trazido escondido. Brincava com ela, aquele menino, um maroto.

Depois correu afoita para dentro e nem teve tempo de chegar ao espelho. Apanhou na cozinha. “O-que-vo-cê-fez-com-es-se-ca-be-lo,-Cla-ris-sa!” Soletrou a mãe às palmadelas. E então tornou-se verdade. Verdade. E nenhum tapa doeu mais do que ele ter feito aquilo de verdade. Ela se entregara e agora tinha um buraco entre os cabelos. Um buraco que levaria meses e vergonhas para ser tapado, bem na frente, como insígnia, como marca de vergonha.

Clarissa nunca mais brincou com aquele menino. Sequer o olhava quando se cruzavam na rua. Mesmo depois de crescidos os dois.

O menino nunca mais se desfez. Nem daquela trança, nem daquela tarde de verão, nem do que sentia por Clarissa.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

nÃO SAIR - por Adilma Secundo Alencar.

Ana resolveu não sair.
Um luto sem cor cobria seu corpo e seus olhos vivos já não diziam.Depois da tempestade daquela semana,perdeu o coração numa correnteza,numa correnteza urbana, dessas que jogam os móveis nas praças, e quanta exposição.Suas roupas íntimas boiando,seus anéis, um estômago exposto.
Ana chorava, seu colo inundado de flores brancas emanava um doce melado, cheiro visguento de amor agonizando.
Ana é ainda mais bonita do que seu corpo diz, ela faz amor como quem dança.
Mas Ana resolveu não sair.
Não viu passar os olhos desejosos de tantos homens,nem sorriu quando um vermelho morno tomou o horizonte e aqueceu sua cisma.Ela fechou a porta de sua casa,se sentou, se deixou na agonia de não enxergar, suas mãos pequenas já não queriam abraçar vontade nenhuma.
Uma mulher em correntezas,só, entre talheres sujos,roupas usadas e um abandono de criança.Soluços, as xícaras, o rosto vermelho escorrendo rímel,as havaianas azuis alfinetando sua saudade, e um anel decepando seu dedo,amputando seus abraços, anulando sua primavera,seu verão que é tempo de escândalo foi anulado por pedras no canto dos olhos.
Talvez Ana volte a escandalizar um coração,talvez Ana escreva uma carta de amor, quem sabe talvez nasça uma flor rebelde no seu peito,mas por hora,Ana resolveu não sair.
Ana resolveu não sair.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

dE QUE SÃO FEITAS AS PEDRAS - por Vinícius Linné

"Ághata" por V. Linné


Ághata é uma boneca de sabão, mas modelada em cigarro, rancor e cancro. Quem poderia querer brincar com ela? Ninguém, nem Ághata.

O cigarro é sua dose diária de autodestruição. A fumaça azul sobe e empesteia ares, mares e cabelos platinados, a turvar os pensamentos e a misturar-se à fumaça de cafés tingidos. Ela não se importa com o cheiro ou o gosto sempre de incêndio que a boca tem. Ela não se importa porque é toda ruínas depois do sinistro.

O rancor é a raiva triste que lhe corrói e lubrifica os mecanismos. É só de rancor que ela se mantém a funcionar. Suas veias incham e se dilatam enquanto um sumo verde e visguento as percorre. Ela odeia. Ághata odeia todas as coisas vivas e aquelas que ainda estão por se fazerem inventadas. Ághata também se odeia, até a raiz das unhas, vermelhas, naturalmente. E demonstra esse ódio. Meu Deus, como demonstra esse ódio, sempre pleno em seus olhos de boneca que se fecham verdes quando a deitam. 

O cancro é seu material mais precioso, sua joia, seu estigma. Ela tem orgulho dele e o esconde como a ostra oculta sua pérola. Ele é a sua prova, a sua indulgência, a razão de tudo, do rancor ao cigarro vagabundo. Vez ou outra ela rebrilha o cancro ao sol. Como para lembrar aos outros de que ela é mártir das culpas alheias. 

Ághata é uma boneca de sabão, mas modelada em cigarro, rancor e cancro. Quem poderia querer brincar com ela? Ninguém, nem Ághata.

Apesar disso, compraram-na na loja. Apesar disso, colocaram-na dentro de uma casa de bonecas, toda branca e brilhante. Apesar disso, deram-lhe outro nome e roupas novas. Apesar disso, arranjaram-lhe uma marionete por marido e um bebê por filho. Apesar disso, deram-lhe vida. Sim, bastou um Sopro de fumaça e a boneca fez-se carne.

Carne, cigarro, rancor e cancro, o mesmo material de que são feitas as pedras.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

sUA CASA - por Adilma Secundo Alencar.

Foi numa tempestade que tudo começou. A virtualidade me apresentou à sua poesia de semântica aguda, os meus olhos correram velozes nas suas esquinas sintáticas e suas letras me levaram às suas lentes, embrenhados ali naquele canto virtual, os signos do recorte e do corte escorrendo uma melancolia enquanto passava café.
E depois, a avenida, a rua, o aconchego de uma casa febril, onde me apresentou um hóspede menino e homem, lírico e triste na sua alegria de amor e serenidade. 

Ela recortou uma parte minha e eu apareço para cuidar da casa que ela ergueu, com o cuidado que eu não teria, ela pintou as portas, mediu os espaços e abriu a casa como uma tesoura corta um pedaço de seda, num rasgo suas letras nos trouxeram estrias de uma cidade inchada, rosas murchando, brotando,suicidas nus no trampolim insensato da paixão morta. Pelas suas lentes um homem levando uma carroça se agiganta levando o dia, levando o mormaço do desespero, deitado no concreto que a criou, os homens saltam gigantes, os guarda-chuvas pulam, bailarinos da garoa.

Seu olhar descortina uma cidade que é só dela, e suas letras tempestivas arrastam mulheres e edifícios. 

Nessa casa,eu e ele esperaremos por ela,zelaremos de suas escolhas e ansiosos,esperaremos que ela volte,rasgando tudo como arma branca.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

a CASA - por Vinícius Linné

"Paradigma" por Simone Huck
Foi pelo riso que viemos. Viemos por ruas esfareladas, a avistar um horizonte no qual o sol estava sempre a se pôr. Viemos por desconstruções, sem vê-la, confiantes apenas. E silenciosos. Meu Deus, como viemos silenciosos. Vez ou outra nos olhávamos e sorríamos, mas nunca nos falamos enquanto estávamos em meio aos escombros.

Talvez fosse medo.

Medo de, ao falarmos, desfazermos o riso que nos guiava. Medo de desmoronar os restos de prédios, de arrebentar os últimos e solitários fios que ainda se agarravam a alguns postes. Medo de que os cacos se partissem se alguma coisa disséssemos.

Nada falamos e o riso nos trouxe para a única rua em que ainda existiam árvores. A única casa com um riso dentro.

O riso bom era estampado nos papéis de parede, bordado nas cortinas, enferrujado nas panelas cheias d’água de chuva, incrustrado nos azulejos, cascateado chuveiro abaixo e pingado sem parar na banheira branca.

E então ela, dona da casa, dos caminhos e do riso, estava lá, braços abertos, espalhando beijos, recolhendo malas e servindo cafés fortes.
"Café do ponto" por Simone Huck

Meu quarto seria esse. O de minha companheira de viagem seria aquele. Café bom quando bem quiséssemos e papéis em dias certos, sobre as escrivaninhas, nos quartos. E nosso riso se imiscuindo ao dela, contornando móveis e criando pássaros para as quinas das árvores.

De repente, porém, a casa começou a ficar muda. O riso que nos trouxera foi, aos poucos, substituído por uns suspiros. Suspiros que infiltraram pelas paredes, a desenhar rachaduras e a fazer poças no carpete. O início do silêncio nos mantinha em um permanente arregalar de olhos, com medo de termos que abandonar o verde e voltar ao âmbar e à areia das ruas.

Tateamos por toda casa, mas não havia como colocar a mão no lugar exato em que lhe doía. Os suspiros vieram fundos e chegaram até a porta da frente. Foi então que ela, a dona da casa, dos caminhos, do riso e, agora, dos suspiros, deixou-nos na mão a chave de prata. 

Seria egoísmo pedir que ela ficasse.
Seria egoísmo deixá-la partir.

Entre dois egoísmos, respeitamos a compaixão dela.

"Chuva" por Simone Huck
Como fechar tudo e partir com ela, se ela tinha caminho e nós não? Como deixar a casa, se as videiras que ela plantou morreriam sem nossa água e atenção? Como deixar as pilastras caírem e as paredes tombarem, se ela teve tanto trabalho para erguê-las?

Ela fizera o refúgio por nós, construído de riso e dor. Se agora era nossa a chave, só nos cabia continuar. Com riso e dor. Sim, abriremos as portas nos mesmos dias marcados, para construir ninhos do que ela deixou. Aconchegaremos papéis e prantos, sentimentos e cafés prontos, mantendo a lareira acesa, sempre acesa, para que tudo fique na temperatura exata de febre. Febre Crônica.

Continuaremos a rir aqui. Um pouco menos alegres, é verdade, mas com a certeza de que nosso riso a guiará de volta. Nosso riso a encontrará no momento certo, varrendo montanhas, passando por pontes caídas, contornando  concretos desfeitos, como o riso dela fez um dia, até nos encontrar. Que nosso riso a encontre e que ela venha caminho afora, que ela venha embora. Embora para sua casa, Simone.

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Esse texto de caminhos é recoberto de carinhos e homenageia a ela que criou essa casa e nos trouxe, Adilma e eu, até ela. Sim, é um texto de despedida. A partir de hoje, Simone recria outros refúgios e nos deixa de responsáveis por este. Que possamos cuidar de tudo, fechar as janelas quando houver vento, não mexer no gás nem na luz, trancar bem à noite e deixar as plantas vivas até ela voltar, pronta para um café.

"Mutante e insensato" por Simone Huck