terça-feira, 31 de dezembro de 2013

dESFRUTE - por Adilma Secundo Alencar.

Rompeu o musgo daquelas noites desesperadas e explodiu em dentes, lábios e olhar, o rosto redondo era só sorriso de susto. Encontrou novamente seu prumo, menos numa cama e mais numa calma de sentir, ela agora já não quer laço, porque os nós atados aos pulsos quase arrebentaram sua força. Na passagem dessa noite ela vai dançar nua, apesar da roupa branca, da lingerie nova.Quem souber reparar melhor verá uma mulher nua,comungando uma paz íntima  que ninguém saberá  tocar, irão ouvi-la,vê-la, mas tocar ninguém alcança,ela já sabe seus próprios labirintos e sabe ruir, reger orquestras de passarinhos errantes,de flores miúdas e rosas de todas as cores.É uma mulher no visgo de sua juventude,de sua mordida, de seus mil motivos para morrer de paixão ou de raiva,seus mil motivos rasgam sua carne e explodem líquidos nos seus olhos redondos e bêbados da novidade do mundo.
E no rito de passagem, anseia um milagre, uma cor, uma seta para a criação do mundo, seu mundo. Ela comeu sete adjetivos no café da manhã, e cuspiu uns poemas na cara dos fracos, dos frágeis, dos delicados. Ela é um carnaval vermelho, as alegorias desfilam derrubando homens, encantando mulheres. Ela vai entrar no novo ano com os olhos livres, suas mãos abraçarão os anjos e os demônios, ela é comovida de amor e é de sua natureza lacrimejar amor. Molhou lençóis e lenços, esteve rente ao abismo, mas dançou ao som de um acordeom sentido, segurou mãos vizinhas e abençoou a noite de sorriso e reza.

Dançará poemas, cantos de sereia, voo de águia, tremor de terra, barulho de flor desabrochando, orvalho no roçado do sertão, falará a língua de uma planta brotando entre pedras róseas.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

pASSAGEM II - por Vinícius Linné

Como no ano passado, o bilhete está comprado. Haverá outra viagem, amanhã, com saída às 23h59min. Com chegada prevista às 0h00min do ano que vem. Outra viagem em que as malas precisam ser feitas, em que será preciso escolher o que levar de 2013 e o que deixar.

Vou fazer tudo igual. Vou me preparar bem, malas, bagagens de mão, passageiros que deverão me acompanhar, casaco para o caso de fazer frio. Vou fazer de conta que está tudo bem. Que deixei as mágoas e carreguei os quereres. Que partirei sem rancores, só carregando bendizeres.

Mas na hora. Ah, na hora...

Na hora em que o trem chegar, vou esperar ao máximo. Vou esperar para embarcar no último segundo. E quando o fizer, vai ser sozinho, soltando minhas mãos de quem as segurava. Sem malas, sem mazelas, sem ninguém. Vou entrar apressado e trancar as portas do meu vagão. Por ali nada passa. Vou arrancar as roupas todas. Não as quero. Nem elas eu quero levar além. Nem poeira ou grão de 2013 quero que fique em mim.

Vou, então, riscar o único fósforo que manterei comigo e atirá-lo pela janela. Vou incendiar as malas que ficaram na estação, previamente preenchidas de álcool, gasolina, poemas velhos e querosene. Que queimem. Que incendeiem bem. Quereres, ofensas, delicadezas e mulheres como as de  Laura Esquível. Que tudo queime. Que 2013 seja só uma luz vermelha, cada vez mais fria, conforme o trem se afasta.

Que queime, enquanto olho e bebo do champanhe mais caro do trem. Que o ano inteiro fique para trás. Que queime e enegreça, encolhendo suas bordas e se fechando em si. 2013 foi um desperdício.  Que o trem seja rápido o suficiente para que nem as cinzas carregadas pelo vento o alcancem. E sim, que só sobrem cinzas de um ano que foi também todo cinza. Que ao chegar à estação, em 2014, eu seja tão leve a ponto de voar para longe. Para longe daquela mancha enegrecida, daquela estação queimada, daqueles ossos e papéis velhos, devidamente carbonizados, que um dia eu chamei  de meus.


'To burn ones memories' by Kaia Pieters

"Y la noche que se incendia,
Y la cama que se eleva,
A volar…
And of the dark days
Painted in dark gray hues
They fade with the dream of you
Wrapped in red velvet
Dancing the night away
I burn…
Midnight blue
Spread those wings
Fly free with the swallows
Fly one with the wind"

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

aZEDO - por Adilma Secundo Alencar.

Os supermercados estão inchados de gente com fome de amor. O preço das ameixas sempre sobe nessa época. Hoje à noite muita gente vai se abraçar com remorso de amor que nunca saiu dos olhos e por dentro não vai sentir fome, vai sentir gosto de palavra azeda, de um sentimento coalhado. Escorrendo um medo de abraçar de verdade, haverá muitas velas e laços e quase ninguém vai dar as mãos.  Panetones caros serão servidos e numa praça da zona sul, o prefeito expulsou os viciados porque eles não combinaram com o verde e o vermelho daquela árvore reluzente. Um menino no interior de Sergipe está a essa hora da manhã trepado num umbuzeiro, porque é tempo de umbu e siriguela, disso ele sabe, disso eu sabia. Mas há o homem de roupa vermelha vendendo sonhos de bicicleta para quem não tem nem ambição, nem tamanho para sentir ódio.


segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

rENEGAÇÃO - por Vinícius Linné

Eu só consigo ter voz pelo outro. De mim as palavras não saem. Um  dia ainda engasgo de tanto que não tenho dito. Por isso coleciono aforismos, mensagens alheias que uso como legendas da minha própria vida. Por isso as músicas, os filmes, os livros, para pescar citações. Para capturar nas falas dos outros a vontade das minhas. Para ser espectador do que a vida pode ser. Nos outros. Sempre nos outros. Em mim não. Em mim a vida é limitada.

Vou buscando na arte alheia a experimentação. A sensação, o arrepio, a excitação, a fome e o que comer. Tudo que eu um dia já quis para a minha arte, para a minha vida. Não quero mais. O alheio já me basta. Alguns nascem assim, para ver. Não para viver. Sou desses.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

pEDRO -por Adilma Secundo Alencar.

Pedro comprou um presente e guardou seus sentimentos dentro dos olhos tímidos de rapaz de dezesseis anos. Ana andava sempre com um livro pra cima e pra baixo e cada vez que se encontrava com Pedro, falava de novas personagens. Sorria suspiros narrando enredos de amor e de traição. Ele sempre atento às palavras da amiga, perguntava do desfecho, dos porquês. Comprara naquele natal um colar de sementes amarelas e esperava que ela enfim desse um suspiro de contentamento e alegria, ou quem sabe surpresa. Naquela semana ela parecia mais altiva, o sorriso solto de Ana intimidava o rapaz que ficava cada vez mais nervoso com a presença brilhante da moça.
Na manhã de sexta, ele colocou o colar dentro de um plástico dourado, guardou-o numa caixa verde e enfiou dentro da mochila junto com alguns livros.

Perto do portão da escola, antes de dizer qualquer coisa, Ana pegou a mão de Pedro e confiou-lhe um segredo. Pela primeira vez, dissera ela, estava vivendo um amor como nos romances. Carlos Eduardo, dois anos mais velho que Pedro, ganhara os olhos e os suspiros de Ana. Pedro voltou pra casa sozinho naquele dia, guardando suas lágrimas nos olhos negros. Foi sua primeira dor.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

cERTIDÃO DE NASCIMENTO - por Vinícius Linné

Que era preciso na vida um toque de ousadia ele já sabia. Não praticava, porém. Resguardava-se. Para quê? De quem?

Naquele dia, pensou mais e pensou diferente. Viveria.

Viveria baixo e em segredo, quase leve. Mas viveria. Nem que fosse para provar da sensação. E como o universo colabora com aquilo que pulsa, a oportunidade se fez.

Primeiro ele olhou, começou a calcular todos os riscos, avaliou a exposição que a vida é, já começava a calcular as consequências quando se advertiu: não era dia de pensar mais. Era dia de se viver.

Respirou. Foi.

. . .

Quando voltou, seu corpo inteiro tremia. Pernas, mãos, braços, pelos e coração. Tudo se eriçava a ponto dele pensar que não sobreviveria ao ato de viver.

Abriu um livro para desfaçar os turbilhões de dentro. Leu incontáveis vezes a mesma frase sem sentido. Desviou os olhos, tentou controlar os braços, respirou fundo e o cheiro que lhe invadiu era de lavanda e pinho.

Então era isso. Então sobrevivera. Então nada havia se rompido na normalidade absurda daquela tarde quente. Nada explodira. Nada se quebrara. Ninguém sequer podia suspeitar que ele havia vivido. Talvez vissem os membros trêmulos, o suor no rosto, o sorriso que mal e mal se disfarçava. Mas quem saberia? Quem poderia supor o que lhe passava por dentro? Quem se importaria? Quem pararia o tempo para condená-lo ou benfazê-lo?

Ninguém.

Naquele dia, ele descobriu que o que vivesse era só seu. E que podia acostumar-se com aquela sensação. A partir daquele dia, ele nasceu. Aos 28, ele nasceu.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

cONGESTIONAMENTO SANGUÍNEO - por Simone Huck

"Trânsito",  2013 -  Simone Huck

Você abre um pacote de bolachas dentro do carro mas não mastiga um tempo recheado de chocolate. Boca amarga. Semáforo vermelho. Você espera cinco minutos num cruzamento que não mata, nem salva. Não há estacionamento capaz de abrigar tanta estagnação. A vida não corre. Sua pressa é uma saliva frustrada. Engula o sangue. É vermelho.

Você engata a primeira marcha e sua traqueia seca tenta gritar alguma coisa que seus ouvidos não escutam. O mundo está surdo. Deus fala em Libras. Internamente você está em marcha ré, perdido num congestionamento que nunca mais te levou para casa. Você está em trânsito. O semáforo está verde. A vida é uma semente que ainda não pode ser consumida. Verde é imaturo. Amargo. Engula.

Pela janela do carro você derrama um olhar e uma vontade que molham a sarjeta do mundo. Sua solidão bate recorde de congestionamento. Seu GPS não calcula novas rotas. A hora do rush são todas as horas. O semáforo está amarelo. Mesmo sem saída você acelera. Há um tráfego intenso nos seus braços vazios. Há uma hora morta te esperando para o jantar. Há uma réstia de fé no fim da avenida cheia. Você acelera mas sabe que não chegará. Amarelo é um meio-termo. Uma escolha incerta. Cuspa ou engula.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

rAIOS AZUIS -por Adilma Secundo Alencar.

Tem gente fazendo pacto de amargura com a vida, enquanto eu escolho uma poesia do Leminski para mostrar para você. Muita gente nesse momento escreve artigos científicos, compra remédios digestivos, enquanto eu separo alguns filmes do Almodóvar pensando se você vai gostar da minha cena preferida. Muitas pessoas andam sozinha pela rua do jeito que eu gosto de andar, eu penso na sua mão pequena que segura a minha. Eu gosto de escolher palavras simples e minhas pra contar uma narrativa corriqueira e quase sempre você ri, porque o cotidiano narrado com riso é humor na certa, Deus é irônico, diz um amigo meu. Há muitas cores cobrindo as pessoas apressadas na avenida já vazia de fim de domingo, mas eu só tinha um gosto azul na boca. Uma tarde pós-chuva descortinou nove anjos laranjas que bailaram ébrios sobre seu gosto de cereja.Tentando dar nome ao que eu quero vivo, afasto a palavra e prolongo o olhar  além do que é óbvio. Deslizo desejo e pele e amanheço menos sono e mais desejo. Ampliaram avenidas, protestaram políticas públicas, anunciaram novas drogas, enquanto eu abria os olhos devagar e só desejava que o dia se abrisse amarelo ou cinza, frio ou quente, mas que se abrisse num sorriso parecido com o seu. Eu não li notícias de jornal, não fui ao banco trocar a senha do cartão, não abri meus e-mails importantes, eu fiquei o dia inteiro tentando escrever um texto azul, mas outras cores vieram e eu fiquei com palavras demais, todas azuis, sem suporte para tanto signo eu deixei seu nome escrito com giz azul dentro de um sol laranja na minha parede.

E esqueci o texto, a tese, os tantos, eu inventei um sol de raios azuis.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

dESAGUADOR - por Vinícius Linné

"[...] vai cair tanta e tanta chuva que será como se a cidade toda tomasse banho. As sarjetas, os bueiros, os esgotos levariam para o rio todo o pó, toda a lama, toda a merda de todas as ruas."
{Caio Fernando Abreu}


Quando ouvi o primeiro trovão, eu soube que você viria com a chuva. Viria de lugares mais sujos que este, viria a escorrer pelo calçamento, a desviar dos bueiros, a ignorar os pingos grossos de chuva e glosa.

E eu ouvi sua voz em mim. Antes de ver o carro, antes de ver seu casaco encharcado, antes de ouvir as batidas na porta. Eu senti seu cheiro. Antes que a chuva lavasse seu corpo, antes que as flores despencassem com o peso das águas, antes que as crianças corressem para dentro de suas casas. Eu senti seu gosto. Antes de provar da chuva na boca, antes de soprar o fogo dos ramos, antes de chupar a última bala de cereja madura.

Eu soube, quando os ventos dobraram as árvores, que você viria com a chuva. E soube, também, que você não partiria ao final dela. Soube porque toda água escorre para algum lugar. Soube porque aqui era o mais baixo a que você poderia chegar. Soube porque sempre foi em mim que você desaguou, deixando pó, lama e merda, como no conto do Caio. Como no conto do livro que você me escreveu.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

eLA -por Adilma Secundo Alencar.

Quantos desejos atropelados na pressa do cotidiano.Ela me deu três boletos de valores salgados,sábados vistos através de vidros devidamente higienizados,livros caros,mas tão bonitos,uma saudade de casa que me fincou identidade e vertigem de cigana.Ela me mostrou luxos que eu não terei e dores que o riso me livrou.Me mostrou também que dizer,às vezes, é mais bonito calando-se, e que se você não tem um coração bobo nunca poderá ser maduro o bastante para brincar sobre a grama no sol frio do mês de maio.Ela me mostrou que a justiça nem sempre é bem recebida e que há quem prefira cadeados e cercas.
Não foi simples,mas foi preciso aprender que a liberdade  é um parto e um estigma, que é o que se tem quando seu olhar se perde na imensidão das cores. Me ensinou que a família é um mundo que comove,enreda, que machuca e dá de comer.Ela me fez lágrimas coloridas no absurdo das guerras.Ela,a vida,chorou comigo essa beleza de caos que o corpo testemunha.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

a INVEJA DOS BEM-AVENTURADOS - por Vinícius Linné

O doutor inveja o lixeiro que passa. A despreocupação do canto, a limpidez do riso, o grito para o companheiro de caminhão, o assovio para as pernas brancas que passam. Ele queria aquilo. Aquela vida. Aquele cheiro que com o banho sairia. O doutor parece ter sempre o mesmo cheiro. A mesma colônia, o mesmo perfume que o banho de cada dia só repõe. Ele queria um cheiro azedo, penetrante, do qual poderia livrar-se no fim do dia.

O doutor inveja o trabalhador que volta da fábrica. O macacão suado, a testa suja, o celular tocando uma música popular qualquer, o sentido da vida exposto, tudo simples, tudo braçal, tudo bruto. Enquanto isso, o doutor ouve clássicos da música, refresca-se no ar condicionado, trabalha em complicados casos médicos e não vê sentido na vida que vê.

O doutor inveja o nordestino que vende redes. Os produtos expostos, as melodias das vozes, a possibilidade de viajar e foder mulheres alheias. A despreocupação, as viagens em ônibus velhos, cidade após cidade, a preocupação do dinheiro que não veio, a fome, o cachorro quente na esquina, quando dá. Enquanto isso, o doutor volta à mulher, aos filhos e à pose que o aprisiona durante o interminável jantar.

O doutor não inveja o sucesso, não inveja a complexidade do espírito, não inveja a fama. O doutor só inveja o que é medíocre e puro e cheira a ocre. O doutor inveja a única coisa que não é capaz de ter. A pobreza de espírito. O céu na Terra. A felicidade, enfim.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

dUAS MENINAS - por Adilma Secundo Alencar.

 A menina desce a rua decidida a lançar o coração como granada, no terreno minado do coração de seu bem só nasce capim-santo, erva-doce. Mas ela insiste em atear fogo, não sabe ainda que a menina dos seus olhos é de água doce, que já nasceu com um beija-flor no peito. Vai fervendo de ira, ciúme e tesão,vai decidida a terminar na contramão do desejo, na ponte dos caminhos óbvios.Ela parte para o encontro com um coração em larvas e chorando uma dor emprestada do mundo. Suas mãos encontram nuvens, mato, manto e renda. Elas costuram entendimento de bicho, silêncio de semente.
O dia é só um lugar de estar. A chuva é cenário. O céu é um tesão vermelho reverberando nos corpos nus,batizados na vontade de laço no lençol com cheiro de flor.
Elas não falam protocolos, não predestinam o dia seguinte. O terreno baldio é jardim e a cidade é um canto de ser feliz, na guerra da vaidade, na raiva. Comungando mel, ela volta com as mãos vazias de granada, com o peito de algodão-doce. E um sorriso que escorrega nos cenários frios da cidade de São Paulo. Reparando bem, são meninas aprendendo beija-flor, comendo manhãs, anunciando rosas e desejos violetas.

São só duas meninas.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

rESOLUÇÕES DA INSÔNIA - por Vinícius Linné

Quantas vezes, quantas vezes ele disse que faria tudo diferente, que estaria disponível para a vida que viesse, que sairia mais, conheceria pessoas, cumprimentaria estranhos nas ruas?

Quantas vezes ela prometeu que renasceria, que teria outros olhos, outros ares, outras histórias para poder contar?

Quantas vezes, quantas, você jurou que sorria mais, que diria sins, que não franziria tanto a testa e nem carregaria tanto amargor nas costas?

Quantas vezes ela tentou se convencer de que valia alguma coisa, de que também era alguém, de que merecia ser amada?

Quantas vezes, quantas dúvidas, quantas vozes internas a lhe dizerem que isso era besteira?

Todas as vezes o mesmo. Uma determinação ferrenha que lhes domava o corpo, eriçava os pelos, despia os medos e afastava de vez o sono.

Quantas madrugadas de vidas criadas, mudadas, inventadas? Quantas vezes a determinação eufórica de que, a partir da manhã seguinte, seria tudo diferente? Não sei.

Todas as vezes a mesma manhã seguinte. Acordar cansados da noite mal dormida, exauridos de planos, despertos para o trabalho de sempre, para a constipação de sempre, o gosto amargo de sempre na boca e na alma.

Tudo lama. O ônibus apertado, o relógio ponto quebrado, o computador com a emoção bloqueada. De novo o almoço, outros estranhos, os mesmos medos. A vida mesma. Tudo igual. Quantas vezes o mesmo? Todas. Todas as vezes.

Era preciso não esquecer, nunca mais, de comprar o Rivotril.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

aPOCALIPSE - por Simone Huck

Acendo um cigarro imaginário e desço uma rua verdadeira. Troquei a palmilha dos meus sapatos. Estou mais alta. Estou mais curvada. Estou envelhecendo rápido. Tenho fome de flores e sede de nuvens. Estou caminhando para o fim do mundo sem mapa.

A mãe está cansada da quimioterapia. Estou cansada de mim mesma. Sento no balcão da primeira padaria. Ainda não é o fim do mundo. Estou na metade de um caminho desconhecido. Peço um café de crenças com pouco açúcar e um pão nosso de cada dia. Pouca manteiga. Não há fé no cardápio. Bendito seja quem acredita. Os dias são apenas uma estatística. Nunca gostei de matemática.

O café chega frio e duvidoso. O pão fala muitas línguas. Mentiras e verdades são batidas com leite, farinha de trigo e dúzias de ovos. Não reconheço onde estou. Minha boca não sente mais o gosto de algumas certezas. A vida é uma pedra de aspartame. Um experimento. Inúmeras probabilidades. Não consigo interpretar todos os dados. Nunca gostei de matemática.

Sombras entram na padaria. Ossos humanos dividem o mesmo balcão. Dúvidas coletivas se abraçam e recitam algum poema sem sangue. Somos todos amigos.

Tiro meus óculos. Espelhos do céu refletem minhas olheiras. Estou trocando de pele. Vou ser uma outra pessoa. A padaria é uma das paradas para o fim do mundo. Um pedaço de pão e um cálice de vinho. Estou na missa de sétimo dia das minhas crenças. Ninguém recitou o pai-nosso. Somos todos amigos. Pão e vinho. Café com leite. A padaria é uma igreja. Meu coração é um templo vazio. Santificado seja o café, a hóstia e as novas amizades.

"Amém". 

terça-feira, 19 de novembro de 2013

rOSA- por Adilma Secundo Alencar.

Ele não tinha aquela pressa de homem urbano, amava sua esposa com um amor doce e calmo que era como um cheiro de alecrim. Chegando cedo do trabalho de marceneiro, ele lavava a louça, comprava uma cerveja e pensava no vestido de Rosa, era apaixonado por aquele balançar de panos e vontades. O sol se despedia, ora frio, ora quente. Ele, sereno, era um homem rente ao abismo da calma, acendia um cigarro, tirava a camisa e esperava. Tantos desejos esperavam ao seu lado.
Lá fora, depois de sua calçada, o mundo seguia tumultuado, mais motoqueiro acidentado na Avenida Rebouças, mais um atendimento do SAMU, mais uma enfermeira iniciante nervosa diante do sangue, mais um homem com o coração sangrando de amor e abandono, mais uma mulher gozava seu abandono num corpo que não amava, mais um estudante se apaixonava pela professora de história, mais um atendimento tardio e um homem morria, mais um exame positivo e a menina vingava depois de tantas velas à Fátima. Nas igrejas, lágrimas de alegria e de dor, de culpa, medo e angústia. Nos motéis, toalhas, calcinhas e promessas cheirando à verde musgo.
Mas dentro do peito dele, dentro de sua casa, só cabia Rosa

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

aS ARCAS DE LAMÚRIAS - por Vinícius Linné

Somos tolos e sentimentais, temos arcas cheias de ouvir lamúrias. Nossas próprias lamúrias. Apesar disso, você se julga melhor. Você se julga feliz. Não me engana. Eu conheço o fundo e o topo dos seus baús. Eu conheço suas queixas e os traços negros que lhe desenham.

A diferença é que eu exploro minhas entranhas sentimentais. Eu as espalho no asfalto e vou chamando gente para ver. Eu as torço e pinto flores feias com o que delas escorre. É o que se tem para pintar. Eu deixo minhas arcas abertas, arejo os panos, penduro nas janelas, exponho e não me envergonho disso. Elas são minhas, as lamúrias. Elas são eu.

Você não. Você as tranca e esconde no porão, como se não fedessem por trás do seu sorriso falso. Você varre os corpos da casa, encerra as tristezas nos armários para que elas não apareçam nas suas fotos. 

Nas suas fotos, nas suas frases, nas suas poesias todas ruins, você é solar. Você reluz, você irradia. Enquanto isso, por dentro, você é lua nova. Você é céu escuro, você é solidão sempre e o pesar de se ser. Mas isso ninguém vê.

Você acha que há delicadeza em esconder as arcas. Não há. Há falsidade. A mesma falsidade brava que você condena em cada um que passa. Eu não escondo. Não escondo porque é o que há para se ver de mim. É o que tenho para dar. É o que entrego a quem passa. Minhas lamúrias podem soar vergonhosas para você. Desculpe. Mas elas soam como canção para quem também as possui e não tem vergonha de confessar: "Hoje eu sou infeliz. Hoje. Você pode ser infeliz comigo? Assim, pelo menos, nossa solidão será menor. Só assim."

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

sOCIEDADE SÍSMICA – por Simone Huck

Otávio rasgou mais uma foto e não conseguiu assassinar da sua memória o rosto de Margarida.
Claúdia deletou outro arquivo mas não limpou a lixeira.
João furou o preservativo no dia em que Angélica estava ovulando.
Maria abortou outro filho e não chorou.
Bárbara teve febre a noite toda.
Paulo engoliu outra neosaldina.
Francisco vomitou quatro pregos e não conseguiu morrer.
Isabela pendurou o quadro na memória e esqueceu.

Kátia chorou e ninguém percebeu.
Marcos mentiu e todos acreditaram.
Simone desistiu e não fez diferença.
Cristiano gritou mas ninguém ouviu.

Placas tectônicas descansam sobre o magma do planeta Terra.
Não há previsão de terremotos, ondas gigantes ou ciclones para esta noite.
Jair está em rotação e ainda duvida de tudo que ouve.
Débora está em translação e ainda acredita em tudo que vê.

Você - que lê esse texto - tem um relógio no pulso, na parede ou no estômago. 
Ele avança. 
Ponteiros e segundos caminham para o funeral de todos os homens. 
Não conseguiremos fugir.
O mundo é uma convicção apostólica. 
Jamais duvide.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

lARANJA - por Adilma Secundo Alencar.

Ela mudou de cidade e fez um pacto de amor com seu próprio corpo, com sua luz. Vivera muito tempo querendo tudo que era oferecido, a casa, o emprego, a vida par. Mas uma inundação de beleza invadiu seu gosto. Agora ela assumia sua própria loucura, é caro viver assim. A vida dela segue devagar e simples. Não sabe cuidar da casa. Passa horas olhando o céu, o asfalto quente, as mulheres pintadas, os homens barbudos, as cores frias do inverno. Dedica seu silêncio e seu afeto ao primeiro sorriso amigo que lhe oferece colo, cama, calma. Ela também dói. Antes não sabia dar esse afeto largo que seus olhos pingam, antes temia a ilusão, hoje só acredita nela, é tudo ilusão. Escolheu a mais cara e mais colorida, a quase loucura de tardes alaranjadas embaixo das árvores sadias e sós. Sangrou pelos olhos com um amor que lhe imprimiu a eternidade nos dentes, no suor, na comida,no filho que não teve, vive assim prenhe de perfume e delicadeza. Ela procura é repouso para esse tanto de amor, e encontra nos bons dias de olhos calmos e grandes. Nas noites que além do corpo está à luz, regada a desejo e fome. É de água e sol, porque não condiciona o gosto, não evita a dúvida de querer bem.
Ela não tem par, não tem páramo. Desfila dúvida e um milhão de feixes solares, a tristeza não dura, porque ela sabe cozinhar massas, sabe fazer doces, sabe se sentar à mesa sem nódoas no peito, sabe comer como um bicho sabe comer, com prazer e com fome.
Cambaleia na multidão, vê o lirismo como a religião do seu corpo, os cartões, as cartas, os laços de gente. As crianças invadindo a grama, as crianças despindo Deus. É milagre e abismo essa beleza que ela enxerga. É quase cessar os ponteiros dos homens e se render às açucenas, aos girassóis.

Ela sabe dançar. E não tem tristeza que não derreta numa manhã como a de hoje, alaranjada.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

iNOMINÁVEL - por Vinícius Linné

Dos livros que você lê, eu sou as palavras que não têm. Eu sou o que está por trás dos pontos, dos parágrafos, dos conceitos e dos homens muito velhos, de barbas longas. Eu sou as palavras que você evita, as que estão repetidas e repetidas, sempre e sempre, nos romances cor de rosa, lá, nas bancas de jornais.

Eu sou as palavras de que escorrem mel nos poemas ruins. Eu, que fico fora dos jornais, dos receituários, dos diagnósticos, dos males e das curas. Eu, que fico de fora das cifras e dos horóscopos, das teorias e dos emails, das imagens e dos textos sacros. Eu, que não sou escrito em braile, nem pronunciado dentro dos bares. Eu, que não exorcizo nem conjuro, não excito nem relaxo, não dou consolo nem doo demais. 

Eu, e só eu, saberia te dizer do jeito certo o que você precisa ouvir. Eu, e só eu, saberia acariciar teus olhos se você me lesse. Mas você não lê. Não lê porque pressente em mim uma armadilha. Não lê e me evita na concretude de seus livros velhos, nos estudos e nos artigos, nas resenhas e nas senhas que, eu sei, ainda têm meu nome.

E será sempre assim: enquanto você não disser minhas palavras, elas não existirão. Enquanto você evitar o abstrato da minha pele e a concretude do que sente, estará salva.

Mas salva de quê?

Da vida? Meu Deus, da vida?

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

rECEITUÁRIO - por Simone Huck

"Paz e Amor",  Beatriz Milhazes


DE USO TÓPICO, ORAL, SUBCUTÂNEO, INTRAMUSCULAR ETC.
1) Regue suas cores. Lustre suas flores. Seque a ponta da sua língua. Penteie a dúvida para fora da sua cabeça. Corte as unhas da tristeza. Embrulhe a depressão em um pedaço de jornal e mire na primeira lata de lixo espalhada pelos postes da sua cidade inquieta. Acerte o passo. Ria no descompasso. Observe os espinhos. Não tenha medo do que sangra. Há uma sabedoria na dor. Aprenda.

2) Coloque na sacola os dias cinzas e leve sua nostalgia para passear. Compre bons livros e faça amizade com cada palavra cúmplice. Alimente-se de vírgulas sensatas. Engula pontuações sem equívocos. Devore o livro todo e deixe nascer dentro de você uma nova história. Uma outra possibilidade. Descubra caminhos novos em estradas antigas. Não tenha pressa. Observe.

3) Ajude um idoso atravessar a rua. Ensine uma criança escrever a palavra paz. Cuide dos seus pais até o último dia da sua vida. Dance no metrô. Dance no banheiro. Dance em cima dos seus obscuros medos. Abra a janela e dê bom dia para a planta que nasceu no meio do muro, entre as pedras. Aprenda com o bueiro o que deve ser sobra, lixo e resto. Aprenda com o asfalto o valor da caminhada. Abrace o céu da sua vida. Ande de mãos dadas com seu melhor amigo. Apaixone-se por você todos os dias. Sorria.

4) Ame mais. Ame cada dia mais: sua vida, o cadarço dos seus sapatos, o pijama velho, sua calça jeans rasgada, a camiseta branca amarelada. Transe todos os dias com você mesmo sem preservativos. Odeie cada dia mais a falta de paz, a confusão, os gritos, a falta de educação e o egoísmo. Ajude a carregar os tijolos para a construção de um novo planeta, uma nova era, uma galáxia inteira. Trabalhe.

5) Abrace ao entrar e ao sair. Distancie-se de tudo o que não acolhe e afasta. Seja inteiro. Seja íntegro. Seja justo. Seja fiel a você mesmo durante o dia, a tarde e a noite toda. No outro dia, também. Reconstrua-se sempre que quebrar. Permaneça em pé e deite para reconectar-se. Beije uma estrela e faça-se demasiadamente feliz. Confie.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

mANGA -por Adilma Secundo Alencar.

Manga.
No último domingo de calor e luz, as suas lembranças iluminaram as paredes do meu quarto. Eu a vi dentro de um raio de sol que me esquentou os seios e meu sorriso se abriu em intenções ternas e cálidas, porque é de minha natureza o visgo, o vinho. Eu tomei suas mãos como estrada, e essa constante ressaca do seu gosto de manga agora é saliva e saudade.
A consulta, a salada, a lotação, o boleto, a luz e a água, tudo na gaveta, para depois, como tem que ser. O mundo cede à poesia, meu alumbramento passeia pelos ombros pesados dos homens de vida reta, nas lágrimas absurdas das mulheres tristes.
Meu susto é um beijo molhado nos sorrisos que seguram a vida rente à carne.
A raiva não rima com nada, a raiva não sabe dançar. A raiva dá tiro, dá úlcera. A raiva é o monstro mais feio, mais feio que o abandono.
Hoje, eu só adoeço é desse amor vagabundo que o meu corpo quer. Se querer bem assim trouxesse de volta o buquê de flores verdes que me levaram.Mas não,o mar não pode ser minha metáfora.
Foi de espinho e chumbo meu primeiro alumbramento, e agora tudo é pétala e pele. Para a morena que é de água afloro em sorrisos verdes de meninice desmedida. Ao homem triste e fechado dou é verbo de lã e fogo. O inferno salta aos olhos, e eu já sei preferir a saúde de ser doida. Eu jogo flores sobre as armas e sepulto meus mortos com comida e bebida, de comer e de beber e esquecer o nome.
Eu quero esse susto eterno de desatinar em alecrim e chuva, sol e margaridas brancas.

É de viver o meu sorriso, é de viver.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

vAZIO - por Vinícius Linné


Coração vazio não pulsa. Bate. Bate no peito, dá socos, pontapés, machuca pela agudeza da sua própria solidão.

Coração vazio não pulsa. Não distribui o sangue, não te deixa vivo por dentro, não te faz querer escrever, pensar, cantar, viver.

Coração vazio não pulsa. Faz eco. Eco das nossas próprias sensações vazias, da nossa falta de sentido (e falta de sentir), da nossa impossibilidade de compreender o para quê da vida.

Se não vim antes aqui foi por falta de ter alguma coisa dentro do coração. Ainda não tenho, mas voltei porque é primavera e qualquer coisa no ar nos explica. Qualquer coisa nos justifica. Voltei porque compreendi que o coração se tem sempre vazio, não importa quem esteja do nosso lado, não importa quem povoe nossos pensamentos, não importa por quem nós fechemos os olhos. Ele continua sempre vazio.

Continua porque ele só poderia se preencher de si mesmo. E ninguém é tão tolo assim. Por isso eu vim. Vim para dizer que ainda há um talvez em mim. Ainda há uma possibilidade, mesmo vazia. Não de ser feliz, não de ser completo, não de ser alguém, não de ser teu. Isso seria tão tolo quanto querer ocupar um coração que, por essência, morrerá vazio.

Vim porque há uma possibilidade de me deitar na tua cama. Uma possibilidade de tirar minha roupa e desfazer meu corpo no teu. Vim agora porque percebi que não há mais do que isso. Não há futuro, não há final feliz, não há sim no altar. Há isso e despedidas. Há isso e reencontros. Há isso e motivos para voltar. Há isso e aquele primeiro abraço, o primeiro contato, a primeira fagulha a queimar tua pele onde meu beijo a marcou.

É por mim que tu ainda fechas os olhos. É por ti que eu ainda fico acordado à noite.

E, mesmo assim, são de vazios imensos nossos corações. E para sempre serão. Por isso eu vim. Porque perdi o medo de perder aquilo que não se tem.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

aZUL - por Simone Huck

imagem retirada do site da Fundação Fritz Muller

Você abre seus olhos azuis pela manhã e não alcança um céu estável. Engole um pedaço de nuvem carregada com leite desnatado e não mata fome nenhuma.
Corre muito e não chega.
Sua saliva é uma dúvida ancorada nos pés da tempestade que se aproxima.
O dia é uma rotina nublada.
Você abre o guarda-chuva.

(...)

Chama o elevador e ninguém interessante sobe ou desce.
O mundo é uma caixa de metal vazia com diversos andares duvidosos.
Olha no espelho e ajeita a febre curta dos seus cabelos longos.
Você está envelhecendo secretamente.
Pega os óculos escuros.
Confere no celular a agenda do dia.
Entra no carro.
Para no farol.
Acelera na subida.
Estaciona.
Chega e nem percebe.
Tenta roer as unhas mas desiste.
Esquece.
Admite.
O mundo é uma tentativa falida arranhando seu otimismo.
Você fecha o guarda-chuva.

(...)


terça-feira, 29 de outubro de 2013

o HOMEM DA CASA AMARELA -por Adilma Secundo Alencar.

O homem da casa amarela acorda antes do dia clarear, se levanta naquela hora em que o céu do sertão é azul-anil, e vai pra roça, no caminho que seus pés rachados conhecem há 60 anos, caminha sem pressa, que fique claro que não foram os anos que lhe deram mansidão, é de sua natureza não ter pressa nos movimentos nem nas vontades. É um existencialista que não foi à escola, porque foi a escola que por tédio fez do existencialismo uma escola. Os seus filhos já tem filhos e ele reconhece seus traços no queixo, no semblante dos homens que são seus olhos, braços. Ele canta diariamente, assovia as cantigas que Gonzaga eternizou, é um menino de sorriso solto, embora o rosto seja grave e fechado e os vincos enriqueçam a fortaleza do que os seus braços alcançam. Essa hora em que o dia chega com uma luz já laranja, mas fria, fria como um boi a sente, é nessa hora que ele é sozinho, no caminho da roça, é sozinho com os cinco filhos e a mulher no pensamento. O juazeiro na subida da ladeira está ali antes dele e faz sombra para os andantes, para uma rês fatigada. As graúnas firmes, o açude, o cocho, a pedra de quebrar licuri, a corda de amarrar o garrote, o liculizeiro onde deixa a moringa, é tudo cenário onde o homem da casa amarela passa, porque de algum lugar nosso corpo vai gastando olhar, o dele está debruçado nas caçutingas, gravatás, macambiras. Os braços não aparentam força, mas resistem como juncos aos tombos e às     quedas que a natureza lhes impõe. O ícto é de sertão, tão português quanto angolano porque é brasileiro. Resiste como um mandacaru, existe como uma flor, o homem da casa amarela não pensa grande porque ele já vive grande.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

o NÃO DE MAYARA - por Vinícius Linné


Eu queria transformar teu não em poesia, fazer escorrer na pele a rima exata que não me deixaria cair de braços abertos. Eu queria. E queria sem entender. Além de tudo eu não entendo. Porque, sinceramente, eu não te queria. Eu já tramava os segredos, eu já tingia as máscaras, eu já preparava a vergonha de seres minha. Eu não te queria e, de repente, teu não me abala.

Logo depois de tantos sins ouvidos essa semana ainda, veio teu não. E ele superou os sins. Sabe por quê? Porque o teu não foi a uma possibilidade, enquanto os sins só confirmavam o que eu já tinha. O que eu tenho me cansa. As possibilidades é que me seduzem, as noites insones a imaginar o depois, a expectativa desenhada, os planos macerados, os ideais pintados em um rosto falso, em um nome fingido que tatuarias no peito. E, então, teu não.

Teu não à minha história imagina, prendendo-a para sempre. Teu não desdenhando dos meus não-ditos. Teu não a abalar minhas crenças, a desfazer minhas capacidades, a tingir de vergonha minha voz quando repito, baixinho, que não, que não me quiseste. Nem agora nem nunca.

E eu, tolo, ainda pergunto o porquê. Ainda me desfaço os restos de honra a querer saber. E então, não por quê? Do outro lado só o silêncio. Uma palavra de três letras, foi tudo que me deste. A palavra errada: não. Uma palavra que não preenche a poesia, que não desliza na pele (a não ser como lágrima), uma palavra que não sustenta, que não publica livros, que não realiza sonhos, que não diz. 

Não.

Uma palavra que não diz e que não me deixará, jamais, dizer: te amei muito mais depois desse não do que qualquer vez antes dele.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

pRUMO - por Adilma Secundo Alencar.

Um voo de um mosquito, um fazer e desfazer de nuvem, um cílio caído, tudo quer pausa.
Pausadamente. Pega minha mão e vamos enfrentar o nojo diário que nos aflige. Deixa para trás seus medos, seus lençóis sujos de rosas, o seu inferno, esse altar incendiário, essa promessa emanando alfazema.
Pausa. Pousa seu rosto e esse exército de expressões de dor no meu colo nu e rompe esse pranto lamacento em que a angústia mora. Joga fora esse erotismo vagabundo comprado numa loja virtual. Deixa que eu lave seu rosto, tire seus anéis, desfaça suas amarras, amarre seu cadarço, seu vestido. Apague do seu olhar esse relâmpago de desejo, não há guerra.
Deita na cama que espera seu sono. Assuma o prumo, estanque esse sangue.
Caules verde oliva, cones laranjas, peças de um quebra cabeça, peças de suas vestes no chão.
Seu olhar é metonímia, é manto e me põe em pele.

Esse formigueiro urbano, essas segundas de chão de zinco, ressoam memórias de marujo. É a pausa, entre uma nota e outra vibra o intervalo das letras, das cirandas, eu quero sentir as pausas, as dissonâncias.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

oS PLATÔNICOS - por Vinícius Linné

Os dias foram passando, o beijo que deixei delicado no teu pescoço foi se apagando. O calor do meu corpo foi esfriando no teu. Esvaneceu-se meu cheiro de madeira e âmbar, esvaziou o sentido, o não dito, o não permitido entre nós.

De repente, à distância, meus olhos ficaram opacos pros teus. Meu brilho foi ficando cada dia mais fosco. Minha voz mais distante. Meus sonhos cada vez mais parecidos com utopias pintadas.

De repente, então, tu decides que não valia a pena mesmo. Que tu não merecias alguém como eu. Melhor: que nós não nos merecíamos. A dor seria demais. O trabalho seria dobrado. O sacrifício seria imenso.

Então deixa. Deixa assim. Segues tu. Sigo eu. Distantes. Sem nunca sabermos do sabor um do outro. Seguimos apartados, com as lembranças do que não foi. Do que poderiam ter sido nossas vidas. 

Se tu assim decidiste, eu acato. Eu acolho tua escolha. Eu recolho meus restos. Eu espano o espaço, dissipo as lembranças, esfrego minha pele até saírem dela as lascas da tua. Eu esvazio meu peito, mesmo sabendo que tu ficarás nele, feito sujeira, impregnada.

E no fundo é só isso. Só. Eu não te queria no canto dos não esquecimentos. Eu não te queria na minha estante de arrependimentos. Eu estava disposto a tirar o coração e te dar, para que ele fosse coisa tua. Assim eu teria paz, de alma toda em ti, toda tua.

E então tu me disseste que não o queria. Que eu fique com meu coração gasto. O coração que eu preparei todo tempo pra te entregar, que eu cultivei e enfeitei só para que um dia fossemos teus. E agora, Deus, que faço desse meu coração sem dono? Que faço do vazio da tua ida sem mim. Da dor de não ter tido uma chance de sequer ser infeliz contigo. O que faço?

Nada. Não faço nada. 

Os melhores amores são mesmo os platônicos.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

dO FIM - por Adilma Secundo Alencar.

A chuva dessa madrugada não me acalma como antes, o café esfriou, eu não renovei o empréstimo do livro, eu não fiz janta,trabalhei mal, comi mal.
Faz quase um mês que já não encontro seu corpo em abraço cúmplice, nos separamos, quando?
A ideia da separação me veio após um dia cansado e interminável, desses em que olhamos os ponteiros do relógio e eles riem ironicamente de nossa pressa, eu não senti vontade de ouvir sua voz, me peguei egoísta e duro por querer a solidão de minha casa e voltei mais cedo que de costume só para dissipar minha culpa.
Nossa rotina tomou a noite e eu logo me esqueci daquele enjoo.
Mas ela voltou, é uma ideia insistente, e repousou com olhos de coruja no criado-mudo.
Numa sexta de calor e brisa, você fez pudim de pão, minha sobremesa preferida, nos amamos serenos, tristes e silenciosos.
Levantei cedo e olhei seu corpo coberto, seu sono pesado, seu nariz fino, seu cabelo curto, sua orelha exibindo brinco de estrela.
Não soube dizer quando ela caminhou do criado-mudo até minha gravata, sei que depois disso cada nó na manhã de minha rotina de homem é um conto de angústia e pergunta talvez a mesma ideia também percorra seus esmaltes, pois já não noto as mudanças frequentes de cores que outrora suas unhas exibiam. Talvez percorra também suas saias longas.
Agora, os anjos de luz povoam meu peito, mas minha língua não tem palavra para dizer fim, seus olhos de maré cheia fazem uma tempestade. Já me perturba a futura ausência de suas mãos macias me fazendo dengos na nuca, e esse cheiro de sexta- feira que o coentro cortado na tábua colorida, comprada nessas feiras que você frequenta, me avisa.  
Se você souber,me acalma essa vontade de partir e mente,mente que ainda me quer bem.
E talvez amanhã sejamos novamente felizes.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

dELE - por Vinícius Linné

E eu, que nem gosto dele, sinto-lhe desmedida falta.

Não gosto de como ele me obriga a desnudar o corpo e os segredos, não gosto de suas armadilhas a prender-me as pernas, acender-me os medos, não gosto de seu gosto salgado e ardido, não gosto de seu cheiro, de suas remanescências, de seu marasmo de macho. Não gosto.

Ainda assim, sinto que meus sonhos estão enrodilhados em suas ondas. Sinto que nas suas profundezas, aquelas de azul muito escuro, está escondido qualquer tesouro que é meu. Sinto que ele me chama, sussurra meu nome em suas indas e vindas, as mãos sempre estendidas para me recolher, as mãos que voltam sempre vazias de mim.

E eu o ouço, inesperadamente, em pistas, em sinais, em carmas e marcas. Em livros, em músicas, em potes de sal que cheiro, provo, misturo com água e passo na pele, dando-lhe uma prova de mim. Uma prova que promete mais, sempre promete. Mais de mim nele, mais dele em mim, mas que está longe de se concretizar. Porque, embora eu ouça e sinta seu chamado, eu não gosto dele. Eu não estou preparado, ainda, para gostar.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

aNIVERSÁRIO - por Adilma Secundo Alencar.




Ao amor de todo dia.
Devo, desde já, pedir desculpas pela caretice de escrever-lhe uma carta minada de metáforas de mel. É que de algum jeito quero que a memória de hoje repouse nesse pretenso papel, mensageiro de meus enleios de amá-la como se fosse seus meus primeiros desejos como se Caeiro existisse a partir desses seus olhos moles. Eu poderia num gesto de carinho reunir suas fotos e editar frases bonitas ou levá-la para ver o luar. Ah, minha vida, como se desesperam todos os signos quando eu, numa busca burra, quero reuni-los para dizer nosso quintal, nossa laranjeira, nossa colcha de retalho, e nosso pingado antes das sete. Se você tivesse roseiras e se eu soubesse fazer buquê, nosso quintal seria o cenário para que enfim emanasse do meu calor toda essa rede de palavra com que hoje eu queria embalar seu descanso.
Eu sei que o tempo é uma mentira e que ele fez circo de nossos vincos no rosto, fez sândalo de nossas insônias pares. Eu guardei suas blusas de lã na gaveta com um carinho que beira a loucura, eu quero ver seu corpo envelhecer dentro de suas cores preferidas e cuidar de suas febres e tosses. Uma carta é uma legitimação menos do nosso amor do que de minha palavra querendo espaço junto ao seu mundo que é outro, dez anos nunca me separaram de seus passos, nem a afastaram de meus desejos, eu sou a ranzinza e você abre o Sol em domingos entre folhas e rasuras de sintaxe ossuda, meu domingo em bibliotecas e meu corpo no seu colchão. Aniversário seu e meu amor queria ser anunciado em avenidas, redes, buquês, vinhos, cadeira, janta e mil letras vermelhas, mas é no calor do seu silêncio que minhas palavras deslizarão mansas e roucas ao pé de seu ouvido, discretas como nós de um bordado antigo.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

iDENTIFICAÇÃO - por Vinícius Linné

O que ela procura na arte e no amor é a mesma coisa: identificação. Nos filmes, nos livros, nos poemas todos, ela busca sua própria história. Nunca a encontra senão em partes. Talvez um filme sobre o que ela passou com a mãe, ou um livro sobre sentir-se sozinha. Nunca mais do que isso. Nunca uma obra que compreenda sua vida inteira, seus pensamentos, seus sentimentos, suas reflexões e filosofias. Nunca seu vazio. Nunca um livro todo em branco em que ela pudesse, poeticamente, escrever sobre si. Não.

No amor também, ela procura alguém com as mesmas vivências, as mesmas apatias de horas marcadas, os mesmos gostos e os mesmos gestos. Alguém que lhe demonstrasse que ela não é a única, por exemplo, a gostar de comer pêssegos debaixo do chuveiro. Alguém que se sentisse mal com a aparência, que tivesse vergonha de sair, que ficasse por horas quieta, esperando alguma coisa incrível acontecer. Não. Ela encontra os homens que bebem, que fumam, que falam besteiras por toda uma noite. Que querem sexo, sobretudo sexo. Homens que não aguentariam um filme de Özpetek, não leriam um poema de Pessoa, não fotografariam uma pitanga de duas cores.

Às vezes ela pensa em desistir das buscas. Ela pensa em investir na carreira, no contar de números, na vida seca e artificial dos escritórios. Ela pensa, então, que não foi feita para o amor, nem todos são. Ela pensa que a arte não é sua vocação, nunca é.

Às vezes ela pensa em se matar. Ela pensa que seria como parar a roda de uma bicicleta emborcada que gira no ar. Em um momento ela gira, gira, gira, fazendo barulho... E no seguinte se pode colocar a mão sobre ela. Primeiro devagar, para não machucar, depois parando-a por completo. Ela fazia isso quando era menina, mas ninguém sabe ou quer saber. 

Às vezes – e essas são as piores – ela acredita que encontrou o que buscava. Um filme que lhe traduz inteira, que lhe eleva a alma, que lhe faz acreditar de novo. Por uns dias. Um par de dias. E então ele se revela só um filme. A vida o sobrepuja. Às vezes é um homem que, de longe, parece diferente, sensível, misterioso, especial, mas que de perto se revela só outro homem. Mais um cujo contato máximo com ela será um cumprimento cruzado na rua. Seguindo, depois, cada um com sua própria solidão sem cura.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

aS RAZÕES DE TEREZA - por Simone Huck

Tereza tinha olhos pretos e redondos como jabuticabas frescas e suculentas. Ofuscava, ao centro, uma espera morta e quente. Nunca entendi como coisas mortas podem ser quentes. Nunca entendo olhos ávidos que esperam alguma coisa dos céus. Tereza devorava nuvens inquietas. Traduzia a intenção do vento. Escutava a algazarra dos canteiros secos que pressentiam água. Sabia exatamente o momento da chuva e saía lá fora, sem agitação ou felicidade. Com uma paciência de pedra em fundo de rio, sentava em uma lata de tinta debaixo da chuva e se deixava molhar. Era fome úmida.

A primeira vez que a vi assim, sentada debaixo da chuva escolhendo arroz, eu passava com meu guarda-chuva e meu casaco. Pensava coisas bobas e indiferentes. Era mais uma sombra anônima na metrópole cansada. Eu e a cidade, escorríamos alguma palavra suja. Nada era lavado. Vi Tereza de longe. Parei no meio da chuva para observá-la. Ela só voltou para dentro da casa quando o céu secou. Seu rosto e a vasilha de arroz comungavam um renascimento que agredia minhas mortes diárias. Era inverno. No outro dia também chovia. Lá estava ela no meio do quintal, lendo. Tereza tinha livros de serem lidos na chuva. Fiquei inquieta com tantas imagens.

O inverno foi chuvoso. Vi Tereza muitos dias. Ficamos amigas. Eu me aproximei. Quando cheguei muito perto, ela entrou dentro da casa e pegou outra lata e me pediu para sentar. Obedeci. Naquele dia ela escrevia uma carta debaixo da chuva. Cada palavra que tentava escrever escorria do papel e caía dentro da lata de tinta. A lata estava cheia de verbos. Minha curiosidade queria ler. Ela não deixou. Pegou minhas mãos e as colocou em seus olhos. Senti um líquido quente no meio da chuva fria. Ela me disse que se chamava Tereza e que há muitos anos não conseguia mais chorar. Só a chuva era capaz de fazê-la ter memória, sentir amor e escorrer lágrimas semânticas.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

iTINERÁRIOS - por Adilma Secundo Alencar.

Poderíamos precipitar os passos, eu sei. Os ônibus demoram mais aos domingos e minha espera foi quase um dia de pensar naquele homem grave. Eu inventei que ele gostava do mesmo chocolate que eu, mas eu sei que não gosta, vi uma barra de diamante negro saindo de sua mochila, eu prefiro chocolate amargo com avelã. As gotinhas de chuva caindo me acalmaram os sonhos, eu sorri sozinha na calada da noite e imaginei que ele estaria àquela hora, tirando os sapatos e se jogando no sofá da sala.  Eu olhei seu rosto de homem triste, barba negra cobrindo o rosto ainda jovem, boca pequena e um olhar inquieto de quem anda com pernas de chumbo precipitando nos currais dos terminais urbanos, era com angústia que ele penteava o cabelo e guardava seus papéis e suas cismas de homem. Eu podia espreitar a sua manhã ainda escura diante do espelhinho do banheiro, não sorriu ao espelho com a boca cheia de espuma branca, secou e perfumou o corpo como quem opera um programa. Ele sentiu falta de perfumes, e engoliu com café preto sua última dor de amor, eu podia sentir naquele homem uma cumplicidade efêmera que os seus olhos insinuaram para os meus. Não era a falta de sexo que sua energia gritava, ele queria ter alguém para reclamar daquele creme de barbear e dizer que juntou uma grana para construir uma casa no interior. Eu desviei o olhar porque eu não sabia como olhar, eu gosto de olhar,no entanto ser olhada é uma invasão à frágil calma dos meus domingos rotineiros. Eu olhei o relógio da plataforma que alterava mais uma vez o horário de chegada do ônibus, meu cachecol verde aquecia minhas mãos e a fila crescia como minha espera. Tomamos nossos itinerários distintos, eu fiquei olhando através da janela e enquanto pude timidamente olhar  o vi bocejar uma preguiça cansada de quem não descansa faz mais de oito dias, ele desceu no ponto do Hospital das Clínicas e eu segui com suas impressões tristes em meus olhos, naquele domingo, especialmente melancólicos. 

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

dEMAIS - por Vinícius Linné

A noite era urgente, mas o sono não se dava conta disso. Bárbara estava deitada, a mão do marido sobre um seio, o leve ressonar dele a dar tom ao tempo, as frestas da janela desenhando linhas em branco na parede e seus olhos muito abertos, sua mente muito desperta, perguntando sem pausar: "É demais querer mais?"

O apartamento quitado, as crianças no quarto ao lado, os armários da cozinha bem planejados, como ela sempre sonhou. As contas pagas, comida suficiente para estragar na geladeira, dinheiro para as viagens e tempo para tudo.

"É demais querer mais?"

É demais querer a música da rua? As mulheres dos bares? Os ônibus que, perdendo pedaços, deixam a cidade para não voltar? É demais querer outra vida, outro tempo e nenhum filho, nenhum marido, nenhum apartamento amplo com vista para o mar? 

É demais querer mais do que o vazio do peito? 

É, lhe respondia, sem que ela ouvisse, a vida. É demais, dizia a ela, acariciando-lhe os cabelos enquanto o sono não vinha. É demais porque vives o sonho que os outros nem têm. É demais porque eu te deixei brincar eternamente de boneca, de casinha, de papai e mamãe. É demais porque eu cuidei de ti como se tu fosses minha filha mais querida. É demais porque arranjei destinos, fardos e fatos que só te conduzissem ao sonho perfeito. É demais. É demais porque desejas a infelicidade, depois de eu te tecer a realidade toda em cor de rosa.

"Deve ser... deve ser demais", resignou-se Bárbara, virou para o lado, abraçou o marido e depois de algum tempo dormiu. Nos sonhos que teve, sofria infortúnios, era abandonada, ficava sozinha, fugia dali apressada, sem levar nada, nem o nome que era seu. Dormia nas estradas, pegava caronas, transava com estranhos e estranhas. Morria, por fim, para nem ser identificada, descendo penhasco abaixo em uma estrada deserta. Acordou molhada de suor e fluidos. Passou toda a segunda-feira a cantarolar.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

dIZEM QUE É PRIMAVERA? - por Simone Huck


"Nó", 2013 - Simone Huck

Você esfrega o rosto com o dorso das mãos e do seu nariz escorrem duas rosas sem espinhos. Nada mais sangra. Sua coriza é uma primavera sem esperas. Você abre o armário e limpa o solado de todos os sapatos. Deseja pisar coisas novas. Caminhos. Jardins. Pessoas. Você está cansado. Muito cansado. Dizem que é primavera?

Há três dias um caroço de feijão mora no buraco do seu terceiro molar. Hoje de manhã, enquanto você ensaiava um sorriso para o espelho, o caroço germinou. Saltou da boca uma semente mentirosa. Visível. Tateável. Espanto. Dizem que é primavera?

Obstinado, você vai até a cozinha. Abre a geladeira. Tira as vasilhas coloridas do congelador e coloca em cima da pia. Pega o liquidificador no armário. Despeja no copo um pouco de água suja da torneira do prédio sem manutenção. Abre as vasilhas. Olha as flores congeladas. Suas esperas descansam em dezoito graus negativos. Retira duas amendoeiras em flor, petrificadas. Dizem que são as flores da esperança. Acrescenta um vaso congelado de bromélias; resistência. Duas gérberas que estavam no pote azul; nobreza. Dois gerânios de flor prateada; recordação. Três rosas vermelhas, árticas, do pote amarelo; paixão. Uma dúzia de crisântemos brancos trazidos do túmulo de sua avó; honestidade. Quatro cravos roxos recolhidos nos últimos casamentos que invadiu; solidão. 

Você tritura tudo. Sorri alguma coisa gelada e amarga. 
Não há açúcar. 
Não há gosto. 
Não há cor. 
Sua traqueia dilata. Não há espinhos. Você não bebe nenhuma lembrança. Seu estômago não reconhece nenhuma memória. Seu fígado não sintetiza um canteiro capaz de germinar um grão de esperança. Seu coração é um deserto salpicado de sal. Sua língua morreu. Dizem que é primavera?

terça-feira, 24 de setembro de 2013

cALENDÁRIO - por Adilma Secundo Alencar.

Esse mês é o seu cheiro arrebentando minha janela, já foi dito que as flores vão dançar blues e frevo. Na minha rotina, eu anotei a chegada dos seus encantos com caneta bic azul, meu calendário sorriu. Fui à padaria e comprei queijo, cigarros. Vi uma mulher triste vendendo vasos de planta, vi um menino correr atrás da pipa. Depois fui à feira, seu Zé insiste em me oferecer jaca, quando eu só quero maçã e abacate.
Pimenta do reino, coentro, orégano e todas as folhas frescas forrando a barraca, toda comida quer nosso prato, quer alimentar nossa razão de colher. As minhas mãos ocupadas com as sacolas da feira, uma preguiça de subir a rua, mas os ipês roxos, amarelos, as folhas molhadas e visguentas no chão me abriram o olhar em graça. Cortar verduras, abrir melancia e memória, salpicar orégano e ternura, beber caldo de cana e ouvir Alceu, minha manhã foi toda cor, foi todo ritual de esperar seu abrir de olhos.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

mEUS LIMITES - por Vinícius Linné

Não há pontes, traços, marcas, placas, fitas amarelas, fossos, abismos, avisos em portas, sirenes, luzes, correntes, escadas ou cordas. Como saber, então, se você está prestes a ultrapassar os meus limites?

Usando a sensibilidade. Minhas divisas são invisíveis e mudam conforme a estação, mesmo assim, há avisos. Quando você se aproximar de uma delas, sentirá o ar e o meu olhar se transformarem. Haverá sinais, sons hipersônicos, mudanças repentinas, um peso, um silêncio... E então esse é o limite. Não dê nem um passo a mais.

Se você desobedecer, se continuar, se não tiver sensibilidade suficiente para recuar, foi-se. Não me responsabilizo dali em diante. Podem haver minas nos meus desertos, armadilhas, fossos, areias que se movem e engolem o que nelas tocar, rosas de veneno mortal, consequências de todo tipo, inclusive a pior delas: eu não lhe conceder, jamais, caminho de volta.

Sim, meus limites são indefinidos e perigosos, mas o que fazer se eu também o sou? Respeitar.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

mACIEL - por Simone Huck


Marc Chagall
Maciel não vendia maçãs. Era construtor literário há quarenta e três anos. Engenheiro de histórias e medos alheios. Vomitava arroz e feijão. Engolia a vida dos outros.

Puxou a cadeira com os calos da mão e sentou-se, naquela manhã, para escrever seu último texto. Maciel era escritor. Estava tão cansado de produzir palavras que chorou em cima da pilha de folhas. Do seu olho direito pingou uma caneta e do esquerdo, outra folha de papel. Tudo que excretava fazia parte do universo literário. Arrotava abajur, transpirava poeira de livros empilhados, escarrava rascunhos e chorava caneta e papel. Do começo ao fim era escritor e já não aguentava mais viver de palavras contadas. Consoantes entraram em colisão com vogais. Seus dias eram uma tônica contada, secando sua própria vida. Poesia clandestina. Os homens eram seu caderno de caligrafia. Maciel chorou um dicionário de sinônimos.

No começo até achou graça e obteve vantagens. Na escola, suas redações sempre foram as melhores. Nos concursos literários do colégio sempre era vencedor. Era o homem mais romântico do bairro, da cidade, do estado. Escrevia longas cartas para Ana, Cristina, Beatriz, Solange, Ágata. Perdeu as contas de quantas mulheres conquistou escrevendo cartas. A maioria das linhas escritas eram completamente mentirosas. Escrevia dizendo que era amor à primeira vista. Elas, carentes, convenciam-se a cada palavra bonita que Maciel escrevia e davam-lhe o que queria. Ele, conseguindo, as cartas cessavam. Só queria sexo. Queria aliviar a mente que não parava de imaginar. Ejacular alguma coisa que não fosse história. Gozar ele. Pagava sexo com palavra bonita. Pagava amor com poesia cheia de rima. Pagava afeto com crônica. Pagava vida de verdade com conto de mentira. Era uma palavra alheia. Sempre alheia.

Maciel não era mau. Também não era o melhor dos homens. Tudo o que queria era sobreviver com a maldição que estava lhe cansando. Escrever tinha se tornado um inferno. Ele queimava.

Mais tarde o dom virou vício. Necessidade. Urgência. Fardo. Não conseguia mais olhar para nada sem escrever. Aproximava-se das pessoas para sugar suas almas. Quanto mais tristeza e tragédia elas carregavam, mais ele sorria - daria um bom texto, pensava. Contaria uma bela história. Salivava com detalhes sórdidos. Ficava excitado com desgraças e tragédias. Era escombro.

Fez mestrado em psicanálise para construir melhor a trama psicológica de seus personagens. Passou a gostar mais de morte do que de vida. Mais do fim do amor do que do começo. Adorava a ira, a inveja, o suicídio, os assassinatos, cemitérios, reuniões dos alcoólatras anônimos, esquinas com prostitutas sujas, boca de fumo e prisões. Torcia para as separações, adultérios, homicídios, obsessões. Precisava escrever. Precisava ser intenso. Precisava ser inédito. Esquecia de almoçar, de dormir, de viver sua vida. Emagreceu vinte quilos nos últimos dois anos. Escreveu onze livros em sete mil trezentas e doze folhas A4, tamanho 12, fonte Times New Roman. Todos que cruzaram seu caminho viraram história.

Numa noite repleta de personagens gordos, Maciel sentiu-se, pela primeira vez, hediondamente frustrado. Tossiu uma tosse tuberculosa e uma intenção cadavérica. Olhou para seu corpo e não encontrou vida. Suas mãos não escreveram histórias dele. Nada mais nele, era dele. Não havia nada dele que pudesse ser contado. Não era autoral. Nunca foi autobiográfico. Não teve heterônimos. Nada confundia-se com ele. Dos outros, mentiu quase sempre. Exagerou. Foi hiato. Farsa. Intensidade clandestina. 

Deitou e dormiu sozinho. Seus personagens não foram companhia.

Puxou a cadeira com os calos da mão e sentou-se, naquela manhã, para escrever seu último texto. Contou, sem escrever uma única palavra, a melhor história de sua vida. Deixou a última folha dentro de um envelope, ao lado da caneta que pingou de seus olhos. Escreveu em linhas invisíveis sobre ele mesmo. Sem mentiras. Sem construções. Sem excessos. Pela primeira vez, esvaziou-se até seu corpo dissolver todos os músculos.

Jogou na lata do lixo todas as canetas do mundo. Queimou todas as folhas e livros escritos. Juntou seus ossos. Colocou-os entre os braços e saiu sem levar a chave. Estava, finalmente, liberto dele mesmo. Era inédito.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

nERVOS IRMÃOS

Acordei com um sorriso besta na cara. Depois de uns dias cheios de amarras, de novo as coisas dançaram aquela dança bruta que não sei aprender, a dança das coisas que são, sem pensamentos, sem tristezas, sem cismas de cabeças errantes e cheias de grilos desafinados. Uma mochila cheia de livros e uma cabeça cheia de dúvidas, eu desci na avenida de concreto e de grama, subi pela rua calma, sábado de manhã tudo se acalma de ressaca ou de cansaço, se acalma. Uma alegria de estudante quando quer aprender, uma liberdade nos passos, uma liberdade de cigana que fica e tem um filho com o mesmo repente que vai e não volta nunca. Minhas mãos folhearam os livros, meus olhos espiaram homens e mulheres, lhes adivinhando a angústia diante da disciplina ossuda e seca dos livros acadêmicos, dissecando poesias do século XVII, lambendo a doçura de Erasmo de Rotterdam, comendo as análises de Bocage, cutucando a pornografia de Hilda.
Um homem varre a rua e respira feliz, a filha mais velha entrou numa universidade pública, ele respira como um homem que deu o que acreditava, uma formiga trabalha, um urubu come uma carcaça de um bezerro, recém-nascido, recém- morto, já comida de urubu.
Eu enfrento meu sertão dentro de uma biblioteca católica, branca e rica, eu leio a violência com que teceram as lutas, enxergo as letras cheias de pus com que ainda massacram os homens, penso nos meus boletos atrasados e na minha dificuldade de ver a liberdade dentro da sala de ar condicionado e de solidões compartilhadas.
A dança do mundo, o som que os ouvidos filtram em vozes, o que eu sei ouvir é polifônico e uníssono.
Eu respiro com liberdade, faço as análises, bocejo, converso com versos de Stela do Patrocínio, com as antíteses que Foucault descortinou e penso nas novenas do sertão em tempos de seca, tudo é unidade que me fez. Tomo um café na rua e converso com seu Zé, homem culto, aprendeu a ler depois dos 18, agora na saúde de seus 60 anos, ler poesia de Patativa, e relembra com esmero as emboladas do sertão, dona Maria, minha vizinha há cinco anos me diz como eu devo não cuidar do meu pé de mandacaru e eu sorrio e lhe digo histórias de livros antigos, ela me diz que eu deveria sair mais, faz uns meses que só estudo, e eu penso, não me explico, dona Maria entende o mundo há mais tempo que eu , isso merece meu respeito, eu penso que é preciso silenciar, eu espio melhor essa dança que eu não sei ainda os passos.
Fora da biblioteca, as arvores viçosas desse sudeste bonito também me espiam, pulsando e mostrando seus troncos cobertos de parasitas necessários, as arvores respiram o mesmo tempo que eu, não há linguagem mais bonita do que o silêncio que compreende o outro.

Em tempo de correntezas é preciso assentar, fazer sentir essa essência de nervos que ainda são irmãos.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

mINHA ESCRITA - por Vinícius Linné

Minha escrita agora é a evolução do gozo, a transcendência. Eu fujo, fujo léguas dessa escrita tua, masturbatória. Dessa escrita que não dá prazer a nenhum outro, que coage, caçoa e coíbe a quem dela se aproxima. Minha escrita é porta aberta, precisa ser, para que eu abra portas no outro também.

Não, eu não escrevo para me mostrar. Eu não escrevo de besta. Escrevo porque tenho em mim a vontade de fazer alguém pulsar. Não, não meço métricas, não rebusco o estilo, não aprimoro vocábulos com a ajuda dos dicionários. Escrevo muito cru e muito simples. Muito nu e muito eu.

Gosto de enriquecer a ideia, não a letra preta. Gosto de tocar outra alma, não só a caneta. Mas te entendo também. E por entender respeito. Respeito o teu prazer, a tua satisfação em humilhar, em se autoexaltar. Entendo e deixo. Entenda-me, então, também. Deixe-me, então, também.

Goze tuas muitas folhas amassadas, tuas intermitências desperdiçadas, tua cultura erudita e vã, vã porque te torna maior e não melhor. Mas deixe que eu goze também, minhas folhas perfumadas, minhas mentiras contadas, minha cultura analítica e de divã, de divã porque quer me tornar melhor do que eu, não maior do que tu.

Eu deixo teus leitores confusos seguirem sem efeito, abandonando textos, reconhecendo estilos, cópias, parágrafos inteiros de outros livros melhores. Deixe os meus reconhecerem músicas, sentimentos, poesias inteiras que eles mesmos teriam escrito, se poetas fossem.

Eu não quero conquistar o que por ti foi feito, eu quero tocar o teu próprio peito e dizer: “Está sentindo isso aqui? É coração e eu tenho também. Quer ver?” Eu não quero leitura de academia, análise, elogio vazio ao estilo ou modo. Eu quero literatura de todo dia, devorada como pão, saciando quem precisa dela, quem vem, lê e parte, sem nada dizer, emudecido, devorado pelo texto também.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

eXIT - por Simone Huck

Ilustração: Laura Laine

Deu um tiro para cima. 
Não assustou a solidão.

Deu um tiro para o lado. 
Não matou o medo.

Deu um tiro para o chão. 
Não esbarrou na confissão.

Deu um tiro no peito. 
Acertou a redenção.