Marc Chagall
Maciel não vendia maçãs. Era construtor
literário há quarenta e três anos. Engenheiro de histórias e
medos alheios. Vomitava arroz e feijão. Engolia a vida dos outros.
Puxou a cadeira com os calos da mão e sentou-se,
naquela manhã, para escrever seu último texto. Maciel era escritor.
Estava tão cansado de produzir palavras que chorou em cima da pilha
de folhas. Do seu olho direito pingou uma caneta e do esquerdo,
outra folha de papel. Tudo que excretava fazia parte do universo
literário. Arrotava abajur,
transpirava poeira de livros empilhados, escarrava rascunhos e
chorava caneta e papel. Do começo ao fim era escritor e já não
aguentava mais viver de palavras contadas. Consoantes entraram em
colisão com vogais. Seus dias eram uma tônica contada, secando sua
própria vida. Poesia clandestina. Os homens eram seu caderno de
caligrafia. Maciel chorou um dicionário de sinônimos.
No começo até achou graça e obteve vantagens.
Na escola, suas redações sempre foram as melhores. Nos concursos
literários do colégio sempre era vencedor. Era o homem mais
romântico do bairro, da cidade, do estado. Escrevia longas cartas
para Ana, Cristina, Beatriz, Solange, Ágata. Perdeu as contas de
quantas mulheres conquistou escrevendo cartas. A maioria das linhas
escritas eram completamente mentirosas. Escrevia dizendo que era amor
à primeira vista. Elas, carentes, convenciam-se a cada palavra
bonita que Maciel escrevia e davam-lhe o que queria. Ele,
conseguindo, as cartas cessavam. Só queria sexo. Queria aliviar
a mente que não parava de imaginar. Ejacular alguma coisa que não
fosse história. Gozar ele. Pagava sexo com palavra bonita. Pagava
amor com poesia cheia de rima. Pagava afeto com crônica. Pagava vida
de verdade com conto de mentira. Era uma palavra alheia. Sempre
alheia.
Maciel não era mau. Também não era o melhor dos
homens. Tudo o que queria era sobreviver com a maldição que estava
lhe cansando. Escrever tinha se tornado um inferno. Ele queimava.
Mais tarde o dom virou vício. Necessidade.
Urgência. Fardo. Não conseguia mais olhar para nada sem escrever.
Aproximava-se das pessoas para sugar suas almas. Quanto mais tristeza
e tragédia elas carregavam, mais ele sorria - daria um bom texto,
pensava. Contaria uma bela história. Salivava com detalhes sórdidos.
Ficava excitado com desgraças e tragédias. Era escombro.
Fez mestrado em psicanálise para construir melhor
a trama psicológica de seus personagens. Passou a gostar mais de
morte do que de vida. Mais do fim do amor do que do começo. Adorava
a ira, a inveja, o suicídio, os assassinatos, cemitérios, reuniões
dos alcoólatras anônimos, esquinas com prostitutas sujas, boca de
fumo e prisões. Torcia para as separações, adultérios,
homicídios, obsessões. Precisava escrever. Precisava ser intenso.
Precisava ser inédito. Esquecia de almoçar, de dormir, de viver sua
vida. Emagreceu vinte quilos nos últimos dois anos. Escreveu onze
livros em sete mil trezentas e doze folhas A4, tamanho 12, fonte
Times New Roman. Todos que cruzaram seu caminho viraram história.
Numa noite repleta de personagens gordos, Maciel sentiu-se, pela primeira vez, hediondamente frustrado.
Tossiu uma tosse tuberculosa e uma intenção cadavérica. Olhou para
seu corpo e não encontrou vida. Suas mãos não escreveram
histórias dele. Nada mais nele, era dele. Não havia nada dele que pudesse ser contado. Não era autoral. Nunca foi autobiográfico. Não teve
heterônimos. Nada confundia-se com ele. Dos outros, mentiu quase
sempre. Exagerou. Foi hiato. Farsa. Intensidade clandestina.
Deitou e
dormiu sozinho. Seus personagens não foram companhia.
Puxou a cadeira com os calos da mão e sentou-se,
naquela manhã, para escrever seu último texto. Contou, sem escrever uma única palavra, a melhor história de sua
vida. Deixou a última folha dentro de um envelope, ao lado da caneta
que pingou de seus olhos. Escreveu em linhas invisíveis sobre ele
mesmo. Sem mentiras. Sem construções. Sem excessos. Pela primeira
vez, esvaziou-se até seu corpo dissolver todos os músculos.
Jogou na lata do lixo todas as canetas do mundo.
Queimou todas as folhas e livros escritos. Juntou seus ossos.
Colocou-os entre os braços e saiu sem levar a chave. Estava,
finalmente, liberto dele mesmo. Era inédito.